sexta-feira, 15 de julho de 2011

Às escuras

A venda ilegal de óculos de grau no centro de Porto Alegre passa despercebida pelos olhos das autoridades, enquanto prejudica a visão dos consumidores



“Olha o óculos, olha o óculos. Óculos de grau por apenas 15 reais”! É assim que Cláudio costuma chamar seus clientes. Ele vende ilegalmente óculos de grau na rua Marechal Floriano Peixoto, no centro da Capital, distante apenas alguns passos de dois policiais militares e em um ponto estratégico - próximo a várias óticas.

Basta uma rápida caminhada pelo Centro para ser abordado por um dos vendedores ambulantes. Por volta das 14h de uma tarde movimentada no centro da Capital, me aproximo, fingindo ser uma cliente, e Cláudio se apresenta quando digo que estou interessada na mercadoria. Depois de me puxar para trás de um pilar, ele abre a bolsa que carrega, cheia de óculos, embalados apenas em um plástico e sem nenhuma identificação. Pergunto se ele tem óculos para dois graus de miopia, sem olhar para bolsa ele puxa o primeiro que vê e diz: “É esse aqui, moça”. Depois disso questiono o preço, e faço cara de surpresa após ouvir que custa apenas R$15. “Está muito barato. É quente mesmo? Vocês têm algum fornecedor direto?”, pergunto. Cláudio deixa escapar um: “É falsi (sic)”. Porém logo se arrepende do que disse e grita: “Tu é repórti (sic)”.

Sou obrigada a me afastar quando o vendedor ilegal começa a fazer ameaças: “Se tu não quer tomar uma ruim, vaza daqui, já teve repórter aqui (sic)”, grita ele alterado. Naquele momento, os vendedores ambulantes começam a se camuflar no meio da multidão e somem como em um passe de mágica.

Em uma primeira tentativa, consegui comprar um óculos, vendido por uma mulher em frente a praça XV, também no centro da Capital. Desta vez, pedi um óculos apenas para descanso, que também me foi alcançado sem que a vendedora nem olhasse para a bolsa onde carregava dezenas deles. “Esse é quente, muita gente compra aqui porque acha a qualidade dos nossos melhor do que os das óticas”, afirma.

Além de vender óculos, muitos vendedores ainda os receitam, ali mesmo no meio da calçada, como se fossem médicos. Em uma outra conversa informal com um dos ambulantes, que se apresentou apenas como Toco, descrevi a dificuldade que estava tendo para enxergar, depois disso ele me disse: “Tu precisa aumentar de um grau e meio para dois graus”. O mesmo vendedor contou que estava muito difícil vender, pois a polícia estava em cima e por isso ele tinha deixado de carregar a sacola com a mercadoria. Agora Toco só vende quando um de seus ajudantes, que fica anunciando os produtos, o chama dizendo que tem um cliente interessado.



O que dizem as autoridades

O Sindicato dos Vendedores Ambulantes e Feirantes do Rio Grande do Sul esclarece que a entidade fiscaliza somente os vendedores registrados junto à prefeitura municipal, que são aqueles que comercializam no camelódromo e que têm as famosas “carrocinhas”, geralmente de gênero alimentício - hoje já considerados microempresários. De acordo com o presidente do sindicato, Giancarlo Guimarães, se um camelô regularizado é pego vendendo mercadoria ilegal, eles fazem uma denúncia para a Secretaria Municipal da Produção Indústria e Comércio (Smic), que faz o recolhimento do material e a apreensão do registro. “Não apoiamos a ilegalidade, sabemos que vender estes óculos é crime”, ressalta.


Guimarães acredita que os óculos falsificados chegam em Porto Alegre por meio dos “mulas”, que trazem mercadorias do Paraguai. O presidente do sindicato diz também que é difícil para a Smic controlar todas as irregularidades que ocorrem no centro da cidade, mas que o sindicato também tem a sua parcela de responsabilidade sobre o assunto. Segundo o presidente, a força-tarefa articulada pela Secretaria junto ao poder público para terminar com o problema não está sendo suficiente.

Outro aspecto abordado por Guimarães durante a nossa conversa é a falta de emprego e oportunidade para todos. “Este problema é social. Estas pessoas procuram este tipo de trabalho porque não conseguiram nada melhor”, afirma. Porém o presidente também considera culpado quem compra este tipo de produto. “É o mesmo caso dos CDs piratas. As pessoas sabem que é falsificado, mas compram porque é mais barato”, explica.



De acordo com o secretário da Smic, Valter Nagelstein, a fiscalização por parte da prefeitura é feita de duas formas: a primeira é a ‘ambulante’, na qual os fiscais fazem rondas, e a segunda é a chamada ‘localizada’, feita por denúncias. “A nossa maior dificuldade é que os nossos fiscais já são conhecidos pela maioria dos ambulantes”, avalia.

Mesmo após a minha denúncia, o secretário acredita que a Smic está fazendo o seu papel. “Se nós não fossemos competentes, esta venda seria ostensiva”, afirma. Nagelstein diz ainda, que quem não está cumprindo o seu papel, são os policiais. Além disso, ele salienta que os vendedores nunca estão nos mesmos lugares - apesar de todas as vezes em que conversamos com os ambulantes eles estarem nos mesmos pontos, mesmo não sendo os mesmos vendedores.

O secretário também relata que já foi abordado por ambulantes ilegais, e que a prova de que a fiscalização está funcionando é que as mercadorias não ficam mais à vista - ao contrário do que aconteceu duas vezes durante a apuração desta reportagem. “A população não enxerga que está cometendo um crime contra a própria saúde e continua comprando estes produtos”, reflete.

O secretário aponta a parceria com o 9º Batalhão da Polícia Militar, mas admite o pouco resultado disso. “Os policiais estão desmotivados graças ao sistema falho, que solta os bandidos que eles têm tanta dificuldade para prender”, conclui.



Após um primeiro contato por telefone com a Polícia Federal do Rio Grande do Sul, questionando o conhecimento da mesma nos casos de contrabando de óculos, recebi como resposta o seguinte e-mail: “Não houve apreensão específica deste produto pela PF nos últimos anos no âmbito da Superintendência”. Mais uma vez insisti por telefone, perguntando se realmente a PF não tinha nenhum dado de apreensão, mas o assessor de imprensa foi incisivo: “Fiz um levantamento e não encontrei nada a respeito”. Quando questionado sobre a responsabilidade da Polícia Federal nestes casos, o assessor admite: “Isto é de nosso interesse sim, mas desconhecemos esta denúncia.



O delegado da Delegacia de Polícia da Proteção aos Direitos do Consumidor, Saúde Pública, Propriedade Intelectual, Material Industrial e Afins, Fernando Soares, diz que diversas investigações sobre pirataria em geral estão em andamento. “Geralmente, no fim dos inquéritos os responsáveis pelas vendas ilegais são presos”, afirma ele.

Soares adverte que a venda de óculos de grau nas ruas é um crime contra a saúde pública. “Depois de apreendida, a mercadoria é encaminhada para o Instituto Geral de Perícia, que informa, através de um laudo oficial, quais são os danos à saúde que este óculos pode gerar ao consumidor. Os materiais apreendidos pela delegacia vão para o depósito judicial ou são destruídos com autorização da justiça”, explica.

Para Soares, a venda ilegal não termina de vez porque há incentivo por parte da sociedade, que continua adquirindo este tipo de mercadoria. Quando conto que presenciei vendedores ambulantes oferecendo óculos bem perto de onde se encontravam dois policiais, Soares é incisivo: “Os judiciários, o ministério público e até a polícia não atuam porque acreditam que é melhor praticar pirataria, do que estar nas ruas roubando. O que é um grande engano, pirataria também é um crime e temos que acabar com isso”.


De acordo com o secretário da saúde do Rio Grande do Sul, Ciro Simoni, a vigilância da saúde é a responsável por avaliar e licenciar os óculos que tem condições de serem comercializados. “É a vigilância que decide quais instituições estão aptas a prestar serviços à sociedade”, explica. Sobre a venda ilegal de óculos de grau no centro da cidade o secretário diz que há uma fiscalização permanente, inclusive por parte da secretária da saúde, mas que infelizmente não é possível se ter fiscalização em todos os lugares e ao mesmo tempo. “Temos feito a nossa parte, mas sabemos que ainda é pouco”, afirma.

Quando indagado sobre as alternativas para quem não tem condições financeiras de comprar um óculos de boa qualidade, Simoni desconversa e conclui rapidamente: “O cidadão sabe quem está apto a vender óculos de qualidade. Quem insiste em procurar os ambulantes na rua está comprando gato por lebre”.


O que as óticas pensam a respeito do comércio ilegal


Um vendedor da ótica Diniz - que fica no centro da cidade - que não quis se indentificar aceitou relatar o que presencia diariamente no Centro. Ele diz nunca ter presenciado a ação dos fiscais da Smic e conta o quanto se sentia acuado quando ainda trabalhava na ótica De Conto, onde os ambulantes montavam banquinhas em frente a vitrine da loja. "Ninguém denunciava. Nós, vendedores, avisavámos o gerente, mas eu nunca vi ele fazer uma denúncia. Na verdade nos sentíamos ameaçados com a presença dos ambulantes e a sabíamos que conversar com eles não ia adiantar nada", afirma. O vendedor também conta que quando a polícia aparecia os ambulantes saiam correndo com a mercadoria, mas nunca viu nenhum policial prendendo ambulantes ou apreendendo mercadorias.

O vendedor, ainda, relata que as óticas são muito prejudicadas pela venda ilegal, uma vez que o produto dos ambulantes é muito mais barato e eles não pagam impostos, manutenção da loja e nem funcionários. “A filial da nossa rede mais prejudicada pelos ambulantes com certeza é a da Borges de Medeiros. Estamos no meio deles, e eles são muitos", conclui.

O gerente da ótica De Conto (onde o vendedor da Diniz conta já ter trabalhado), Carlos Machado, afirma que as vendas são prejudicadas em até 20%, diariamente, por conta dos vendedores ambulantes em torno da loja. “Me sinto desrespeitado com a presença deles, mas sei que nada é feito. Tem épocas que a situação está melhor, porém não dura muito tempo”, conclui.

Segundo o proprietário das Óticas Livi, Henry Livi, houve uma melhora na situação das vendas ilegais após a construção do camelódromo, mas ainda acha a concorrência com os ambulantes desleal. “As óticas geram empregos, pagam impostos e se preocupam com a saúde visual da população”, ressalta. Livi ainda lembra que por muitos anos anos fez denúncias para que a situação se regularizasse, mas faz pouco tempo que a fiscalização começou a melhorar e apreender os óculos vendidos nas ruas. “Mais de 50% do faturamento de uma loja é destinado para os impostos, direta ou indiretamente, por isso a concorrência com os ambulantes é tão injusta”, afirma.


O Sindicato das Óticas do Rio Grande do Sul preferiu não se manifestar sobre a venda ilegal de óculos de grau no centro da cidade. Após diversas tentativas, frustradas, em conseguir um depoimento do presidente, esta matéria ficará sem a visão da Instituição sobre o problema.


Os perigos para a saúde

De acordo com o médico oftalmologista, Fernando Leite, a necessidade de usar óculos feitos sob medida se dá porque cada pessoa tem uma distância entre os olhos que varia de acordo com o tamanho do rosto. Esta distância tem que ser igual ao centro óptico das lentes. Os óculos comprados prontos dificilmente apresentam o centro óptico adequado para os olhos de quem os usa. “Com esses óculos a pessoa consegue enxergar, mas depois de algum tempo começam a aparecer desconfortos visuais, como dor de cabeça, ardor ou lacrijamento”, afirma.

Outro incoveniente, retratado pelo médico, em comprar óculos prontos é que inúmeras vezes as pessoas têm graus diferentes nos dois olhos e, com certeza, usando esses óculos irão forçar mais um olho do que o outro, ocasionando assim problemas visuais. Quando, além da vista cansada, a pessoa também apresenta problemas como astigmatismo, usando esses óculos a correção será parcial, já que eles não corrigem o astigmatismo, trazendo prejuízo para a visão do paciente.

Leite aconselha, sempre, a consulta com um médico especializado quando surgir alguma dificuldade para enxergar, pois em uma consulta pode-se detectar doenças, que podem causar cegueira, como diabetes, glaucoma e hipertensão.

A dona de casa, Ieda Bierfeld Moysés, de 57 anos, comprou um óculos de camelô depois de quebrar o seu. Na urgência de comprar um novo, a dona de casa acabou se rendendo ao comércio ilegal. “Procurei os camelôs porque estraguei meu óculos em uma sexta-feira, ou seja, não poderia consultar no final de semana meu oftalmo, mas por custar tão barato acabei me acomodando e não indo ao médico nem comprando outro óculos em uma ótica”, conta.

Ieda diz que sentia que a lente do óculos comprado no camelô parecia mais forte do que ela estava habituada e que ele lhe embaralhava os olhos quando olhava para longe. Ela ainda conta que o próprio vendedor ambulante tinha um painel de letras e números, iguais aos usados pelos médicos, para avaliar a sua visão. “Na época em que comprei, enxergava bem de longe, mas não de perto e depois do uso deste óculos, passei a não enxergar bem de longe também”, lembra. Depois de três anos utilizando o óculos comprado de um camelô, Ieda havia aumentado o grau de hipermetropia e tinha também desenvolvido miopia.

Segundo o oftalmologista, o problema de Ieda se ocasionou graças a uma acomodação que o olho fez para se habituar a uma lente que não era feita para ela. “Com certeza o aumento do grau e a miopia estão ligados aos óculos que ela comprou no camelô. Além de não serem feitos sob medida, estes óculos tem um material de péssima qualidade, muitos deles tem lentes foscas e que embaraçam a visão”, explica.


- O Hospital Banco de Olhos de Porto Alegre desenvolve um projeto chamado “Saúde do Olhar”, que em parceria com a Congregação das Irmãs Filhas do Sagrado Coração de Jesus realiza exames em escolas e centros comunitários de baixa renda. De acordo com uma das responsáveis pelo projeto, a médica oftalmologista Roberta Prietsch, o mal uso de óculos de grau é uma das principais causas do glaucoma. De acordo com a médica, em maio deste ano o Banco de Olhos realizou, através de seus projetos, o exame de detecção de glaucoma em mais de 570 pessoas.


“Temos também uma parceria com a Fundação Leonística de Assistência Social, que conta com uma unidade móvel de saúde - que pode ser solicitada por instituições - para eventos abertos ao público, onde realizam-se exames. Com a unidade móvel da fundação e os médicos do HBO, atendemos pessoas de baixa renda, principalmente crianças de escolas públicas, em diversos municípios do estado”, explica Roberta. Em 2010 diversas ações, diagnosticando e cedendo óculos a quem precisava, foram realizadas.


O que diz a lei


A Lei nº 12.903, de 14 de janeiro de 2008, dispõe sobre a comercialização de produtos ópticos e o licenciamento do comércio varejistas e de prestação de serviços de produtos ópticos e afins no Estado do Rio Grande do Sul. Esta lei diz que nenhum estabelecimento de venda ao varejo e de serviços de produtos ópticos poderá instalar-se e funcionar sem prévia licença do órgão de vigilância sanitária competente. A Lei ainda explica quais os documentos necessários para o licenciamento do estabelecimento, e que todo estabelecimento deverá ter um responsável técnico. .