quinta-feira, 16 de setembro de 2010

Texto interessante para os dias atuais

Afinal o que as empresas querem?

Quando estudantes ou em início de carreira, é necessário experiência. Porém depois de anos de mercado, dizem que estamos com excesso de qualificação.



Wesley Miranda • Caros(as) colegas,

Gostaria de compartilhar o texto que acabei de ler, perfeito para a situação atual.

O medo causado pela inteligência.

Quando Winston Churchill, ainda jovem, acabou de pronunciar seu discurso de estréia na Câmara dos Comuns, foi perguntar a um velho parlamentar, amigo de seu pai, o que tinha achado do seu primeiro desempenho naquela assembléia de vedetes políticas.

O velho pôs a mão no ombro de Churchill e disse, em tom paternal:

“Meu jovem, você cometeu um grande erro. Foi muito brilhante neste seu primeiro discurso na Casa. Isso é imperdoável! Devia ter começado um pouco mais na sombra. Devia ter gaguejado um pouco. Com a inteligência que demonstrou hoje, deve ter conquistado, no mínimo, uns trinta inimigos. O talento assusta".

Ali estava uma das melhores lições de abismo que um velho sábio pôde dar ao pupilo que se iniciava numa carreira difícil. Isso, na Inglaterra. Imaginem aqui, no Brasil. Não é demais lembrar a famosa trova de Ruy Barbosa: “Há tantos burros mandando em homens de inteligência, que, às vezes, fico pensando que a burrice é uma Ciência”.

A maior parte das pessoas encasteladas em posições políticas é medíocre e tem um indisfarçável medo da inteligência. Temos de admitir que, de um modo geral, os medíocres são mais obstinados na conquista de posições.
Sabem ocupar os espaços vazios deixados pelos talentosos displicentes que não revelam o apetite do poder mas, é preciso considerar que esses medíocres ladinos, oportunistas e ambiciosos, têm o hábito de salvaguardar suas posições conquistadas com verdadeiras muralhas de granito por onde talentosos não conseguem passar.
Em todas as áreas encontramos dessas fortalezas estabelecidas, as panelinhas do arrivismo, inexpugnáveis às legiões dos lúcidos. Dentro desse raciocínio, que poderia ser uma extensão do "Elogio da Loucura", de Erasmo de Roterdan, somos forçados a admitir que uma pessoa precisa fingir de burra se quiser vencer na vida.
É pecado fazer sombra a alguém até numa conversa social.
Assim como um grupo de senhoras burguesas bem casadas boicota, automaticamente, a entrada de uma jovem mulher bonita no seu círculo de convivência,por medo de perder seus maridos, também os encastelados medíocres se fecham como ostras, à simples aparição de um talentoso jovem que os possa ameaçar.
Eles conhecem bem suas limitações, sabem como lhes custa desempenhar tarefas que os mais dotados realizam com uma perna nas costas... Enfim, na medida em que admiram a facilidade com que os mais lúcidos resolvem problemas, os medíocres os repudiam para se defender.

É um paradoxo angustiante!

Infelizmente, temos de viver segundo essas regras absurdas que transformam a inteligência numa espécie de desvantagem perante a vida.
Como é sábio o velho conselho de Nelson Rodrigues... "Finge-te de idiota, e terás o céu e a terra".

O problema é que os inteligentes gostam de brilhar. Que Deus os proteja. Outro problema é que nem sempre o Poder é fruto da inteligência e o Mundo vai de Mal a Pior. Que Deus nos proteja.

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

Antropologia

A Rede das Palavras
ALVES, Rubem. A Rede das Palavras. In: O suspiro dos oprimidos. Paulinas: São Paulo, 1987. cap.1 pp 7-17

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I - A REDE DAS PALAVRAS


"A palavra falada foi a primeira tecnologia por meio da qual o homem se separou do seu ambiente a fim de se apropriar dele sob uma forma diferente." Marshall McLuhan.

"Para o homem social o universo só existe por meio da sociedade e, conseqüentemente, por meio da língua." H. Lefebvre.

"Falar é um ato de liberdade; a palavra é liberdade. É correto, portanto, que a linguagem seja considerada a raiz da cultura." L. Feuerbach.


Linguagem e poder

Dos protozoários ao homem, todos os organismos têm um problema comum a resolver: a sobrevivência. Seres vivos são seres de carência. Cada momento ou expressão de vida é uma perda de energia. Ao expressar-se a vida tende para a morte. Daí a necessidade de recuperar a energia perdida para poder continuar a viver.

Mas, como é que o organismo faz isto? Pela incorporação da natureza a si mesmo. "A natureza — observa Marx, é o corpo inorgânico do homem. Dizer que o homem vive da natureza significa que a natureza é o seu corpo, com o qual deve estar num processo de trocas constantes, a fim de não morrer."1 Afirmação que vale para todos os seres vivos porque, como constata Bertalanffy, "um organismo é um sistema aberto, no sentido preciso de que ele conserva sua forma somente graças a um fluxo contínuo de trocas com o mundo."2

Isto quer dizer que a sobrevivência depende da eficiência dos mecanismos desenvolvidos pelo organismo para fazer com que a natureza venha a ser uma junção de suas necessidades, Uma vez perdida a energia, a única fonte possível é a natureza: Mas este universo físico ignora o organismo. Nada existe nele, nenhuma teleologia, que o organize como função da vida. Nada o obriga a fornecer as energias de que o animal carece. Por isto estas energias só são apropriadas pelo organismo por meio de um ato agressivo, parasitário, pelo qual o animal toma da natureza e a assimila: torna-a semelhante a si. Biologicamente não creio existir muita diferença entre matar um animal para servir de alimento e o simples ato de respirar. Ambos são formas de apropriação de energias. Só sobrevivem os animais aptos para fazer isto. Sobrevivência, em última análise, é uma função do poder, da eficácia do organismo para se apoderar do seu meio.

Dando um passo adiante, observemos que a atividade animal não se processa a esmo, numa constante sucessão de tentativas e erros. Muito ao contrário. Ela é ordenada e previsível. Possui uma lógica que é determinada pelas necessidades específicas do organismo em questão, e pelas condições do ambiente em que ela se dá. Na realidade tudo se processa como se ela fosse programada pelo corpo do animal. Vamos explicar: Sabemos que os vários organismos são resultados de longas histórias, de processos distintos de experimentação que se deram através de milhares de anos. Os experimentos mal sucedidos terminaram com a extinção das espécies que os empreenderam, e sobreviveram aquelas que conseguiram inventar e aprender soluções satisfatórias. Inventar: descobrir uma fórmula mais eficaz para resolver um problema. Aprender: preservar a experiência testada, para usá-la no futuro. A aprendizagem é a transformação de uma experiência que se poderia perder no passado, numa ferramenta para conquistar o futuro. Vemos aqui o sentido funcional da memória: ele permite que o organismo racionalize seu comportamento futuro com base numa experiência passada.

Cada organismo é uma estrutura que preserva uma invenção, e um aprendizado típico para o problema da sobrevivência. Para uma ameba, uma pulga, um rato, um gato, um urubu, um camarão ou um polvo, o problema da sobrevivência e as soluções para ele são absoluta e radicalmente distintas. Cada organismo é um processo de aprendizagem preservado como memória biológica; é uma história transformada em estrutura. E a isto se denominava comportamento instintivo. Em outras palavras: o animal é determinado ou programado pelo passado de sua espécie, presente em sua organização biológica. Daí poder-se dizer (Berger e Luckmann) que o animal é o seu corpo. A consequência disto é que seu comportamento é estabilizado, fechado. Sua programação está completa. Não permite reorganização. É verdade que o animal tem certa capacidade para aprender a resolver problemas novos. Mas à medida que sabemos, tal processo é sempre regulado por sua programação biológica, que em nenhum momento pode ser reestruturada. Em outras palavras: o animal não é livre em relação ao seu passado; não pode reorganizar sua experiência e a sua atividade.

Notemos agora uma outra coisa. O animal não organiza a sua ação simplesmente em resposta às suas necessidades. É verdade que a ação irá sempre buscar atender a uma necessidade. Entretanto, a forma que ela toma depende de certas informações acerca do meio ambiente, colhidas e interpretadas pelo animal. Por exemplo: um pássaro pode estar com muita fome, mas ele não se aproximará do alimento se perceber a presença de um gato por perto. A necessidade de comer cede diante de uma necessidade maior: a sobrevivência. Dadas as necessidades de sobrevivência, o animal organiza sua ação de acordo com certa interpretação da situação que lhe é transmitida pelos seus sentidos e memória. Através do corpo o animal é informado se seu ambiente é propício ou ameaçador, se ele deve avançar ou fugir. Sem esta atividade interpretativa a ação não poderá ser coordenada com eficácia. Generalizemos: para ser eficaz a atividade tem de se dar em resposta a urna atividade interpretativa que ê, mesmo nos seus níveis mais rudimentares, uma forma de conhecimento.

O mecanismo mais simples de interpretação do mundo é a capacidade do organismo para sentir dor ou prazer. A sensação de prazer é um ato de conhecimento que interpreta uma dada relação organismo-ambiente como sendo favorável ou à sobrevivência ou à expressão do corpo. A sensação de dor, ao contrário, faz o animal saber que sua vida está em perigo. A atividade se dará, então, ou pela aproximação do animal do objeto que lhe causa prazer, ou pela sua fuga daquele que lhe causa dor.

Este fato tem consequências muito importantes para a organização da experiência. Verificou-se que as experiências organizadas em resposta a uma situação de prazer tendem a manter-se abertas, enquanto aquelas que se formaram em resposta à dor tendem a fechar-se. Como se chegou a tal conclusão e o que ela significa? Um rato, colocado numa caixa, tem o seguinte problema: para conseguir o alimento terá de mover um alavanca. Depois de mover a alavanca acidentalmente algumas vezes o animal aprende que há uma relação causal entre tal ato e o recebimento do alimento. Experiência de prazer. Entretanto, se se desligar a alavanca do mecanismo que dá o alimento, o rato ainda irá movê-la algumas vezes, mas logo descobrirá que a coisa não funciona mais, que a relação causal anterior não mais existe. E tratará de reorganizar o seu comportamento. Modifiquemos a relação. Ao invés do alimento o rato receberá um choque ao mover a alavanca. De forma idêntica ele aprenderá esta situação. A alavanca passará a ser associada à dor e portanto será evitada. A dor produz sempre um comportamento de fuga (avoidance behavior). Mudemos a relação, desligando a alavanca do choque elétrico e ligando-a ao mecanismo do alimento. Porque o rato foi condicionado a evitar a alavanca, ele fugirá de outras experiências com ela, e, portanto, não aprenderá que a relação deixou de ser desagradável para ser de prazer. Desta forma, a aprendizagem que se dá em resposta à dor tende a impedir a reorganização da experiência, à medida que ela faz com que o sujeito evite contatos novos.

"O aspecto interessante do comportamento de fuga está em que ele leva o animal a se isolar e, portanto, a não se expor a aspectos muito importantes do meio ambiente."3 A experiência dolorosa leva o sujeito a fechar-se para o novo e a se consolidar em torno de uma aprendizagem passada. Isto é muito importante para que se compreenda a razão por que os universos linguísticos construídos em resposta a uma experiência dolorosa tendem a tornar-se rígidos, impedindo novos contatos do sujeito com o mundo.

Ao contrário dos animais que têm uma programação definida biologicamente e, portanto, fechada, o homem é aberto. Com isto queremos dizer que sua programação não se fecha: é incompleta, defeituosa talvez. Tudo dependerá do ponto de vista. Mas por que dizemos isto? De que informações dispomos para fazer tal afirmação? A resposta é muito simples. Observa-se que existe uma relação constante entre a estrutura biológica do animal e a sua atividade. Determinados animais sempre fazem a mesma coisa. Se temos em mãos um ovo de pássaro, sabemos, antes de ele nascer, que tipo de ninho ele irá fazer e qual tipo de canto será o seu. Inversamente, se ouvirmos certo canto ou virmos certo ninho, sabemos de que pássaro provém. Isto se aplica a todos os animais.

Em relação ao homem, entretanto, tal não acontece. A história e a antropologia nos revelam que a produção humana é fantasticamente variada, diversificada e mesmo contraditória. Ao comparar os utensílios que culturas distintas criaram para atender às suas necessidades, constatamos simplesmente que eles são diferentes, e com isto, somos remetidos a diferentes maneiras de comportamento humano. Entretanto, quando comparamos as cosmovisões ou estruturas de valores que estes homens criaram, veremos que frequentemente elas não são apenas diferentes, mas contraditórias e opostas. E tudo isso foi feito por um mesmo homem, definido biologicamente. Não se pode, portanto, dizer que haja uma relação causal entre o corpo humano e a atividade humana. Há um vazio imprevisível entre o corpo e a atividade. Tudo se processa como se o homem tivesse de inventar aquilo que ele irá fazer. É por isto que dissemos que sua programação é aberta. Ao contrário dos animais, o homem não é determinado pelo seu passado biológico. Daí a possibilidade de sua abertura ao futuro.

Vejamos a diferença entre a atividade animal e a humana sob outro aspecto. O animal toma o mundo tal como lhe é dado. Sua postura é totalmente ecológica: adaptar-se e ajustar-se ao meio ambiente. O homem, ao contrário, não toma a natureza como o seu limite, mas busca transformá-la para que ela se ajuste às suas próprias exigências. E ao nos referirmos a esta atividade transformadora não temos em mente tão só as alterações do ambiente por meio da tecnologia, desde seus aspectos mais primitivos. O próprio ato de organizar simbolicamente a natureza já é uma técnica de que o homem lançou mão para transformar o universo físico de um contínuo espaço temporal indiferenciado, num cosmo, numa estrutura significativa dentro da qual ele pudesse orientar-se. "A palavra falada observa McLuhan, foi a primeira tecnologia por meio da qual o homem se separou do seu ambiente a fim de se apropriar dele sob uma forma diferente."4

A atividade humana, assim, tem por objetivo sujeitar a natureza às necessidades do corpo. Daí a necessidade de que o mundo seja organizado em função de sua vontade. Esta é a razão por que os homens criam universos simbólicos, criam religiões e fazem história e os animais não. Os universos simbólicos, a religião, a história são expressões do esforço humano no sentido de tornar a natureza, o tempo e o espaço em função de si mesmo. Esforço titânico para antropologizar o universo todo, transformando-o numa extensão do corpo.

Dizíamos, antes, que a sobrevivência depende de mecanismos eficazes de que o corpo disponha a fim de resolver o problema de incorporar energias novas, extraídas da natureza. Ora, o corpo humano se caracteriza por sua imensa fragilidade. Daí à necessidade de inventar técnicas para aumentar a eficácia do corpo e melhorar o desempenho dos seus membros. Técnicas são extensões do corpo. Sob este ponto de vista a sociedade pode ser entendida como uma técnica, pois que as necessidades humanas de sobrevivência só podem ser resolvidas por mecanismos sociais. Assim como as técnicas são expansões do corpo, também o é a sociedade. E de forma muito especial, pois ela chega a condicionar os nossos próprios sentidos. "A nossa linguagem conceptual —, observa Merton —, tende a fixar nossas percepções, e de forma derivada, nosso pensamento e comportamento."5 Ora, é a linguagem que faz a sociedade possível e esta torna a linguagem necessária. O condicionamento de nossa percepção pela linguagem é, realmente, o condicionamento de nossa maneira de ver, ouvir e sentir pela sociedade. Isto significa que nossos mecanismos de interpretação não são mais puramente biológicos, mas sociais. Se o animal interpretava sua relação com o meio ambiente através de reações puramente orgânicas de dor e prazer, o homem, ao contrário, vai ter mesmo suas dores e prazeres naturais interpretados pelo seu corpo social. A sociedade transforma o esquema interpretativo orgânico de dor e prazer num esquema interpretativo cultural de valores. Valores são a forma que a dor e o prazer assumem num contexto cultural. O que é um valor positivo? É aquele que sugere uma ação positiva, da mesma forma que o prazer provoca uma ação de aproximação. É um valor negativo? Uma proibição, uma inibição de ação, da mesma forma que a dor significa para o animal um objeto proibido. A realidade social condiciona assim tanto a nossa interpretação da situação em que nos encontramos como a maneira pela qual organizamos nossa ação para fazer frente à situação assim definida.

Vejam, portanto, que a atividade humana é governada pelos valores do grupo. São os valores que lhe interpretam o mundo e que, conseqüentemente, indicam os caminhos de ação. Max Weber chama a nossa atenção para o fato de que as "imagens do mundo" — ou aquilo a que chamaríamos cosmovisões — funcionam frequentemente como o homem que controla os trilhos dos trens, determinando os "trilhos em que a ação humana corre, movida pela dinâmica do interesse."6 É lógico que os valores não são entidades "ideais" que desceram de um mundo além do nosso; entidades portanto "reveladas", universais e eternas. Os valores, da mesma forma como a dor e o prazer nos animais, são mecanismos para a interpretação do mundo, criados por grupos humanos, em meio à sua luta para sobreviver no seu meio ambiente. Somente é valor para um grupo social aquilo que ele entende ser indispensável para a tarefa de sobrevivência humana. Aquela atividade que descrevemos atrás como o esforço para antropologizar o mundo adquire aqui um pouco mais de precisão. Se o homem, diferentemente dos animais, não é definido biologicamente, mas antes socialmente, por meio dos valores que indicam as condições de sua humanidade (ou de sobrevivência, ou de humanização), podemos dizer que todo o esforço humano é uma tentativa para transformar valores em fatos históricos e sociais A atividade humana é um instrumento de mediação que toma o universo físico ou uma ordem social precária e busca moldá-los de sorte que venham a harmonizar-se com os valores humanos. Isto é evidente desde as mais primitivas formas do comportamento humano. Quando, por exemplo, culturas primitivas, através do ritual religioso repetiam e imitavam os atos cosmogônicos dos deuses, estavam simplesmente tentando tornar eficazes, novamente, aqueles momentos e atos que eram de valor supremo, por se constituírem no início o fundamento do seu cosmo físico e social. Não nos interessa se os efeitos desejados eram atingidos ou não, mas simplesmente a intenção do ato. Seu objetivo era tornar históricos (no sentido de objetivos, concretos), através de imitação e repetição, aquilo que a comunidade toda considerava ser os valores supremos. Creio que este modelo se aplica a tudo que poderíamos chamar de atos de criação de cultura. Digo que este é o ato essencialmente humano porque é somente por meio dele que se resolve a contradição entre o homem e a natureza. Como bem observa Marx, as contradições teóricas entre subjetivismo e objetivismo, espiritualismo e materialismo, contradições que refletem a contradição entre o homem e o mundo, se resolvem por meios práticos.7

Quando discutíamos a ação animal indicamos que ela se organiza segundo uma programação biológica: o organismo conteria a memória das atividades necessárias para sobreviver. Atividades, enfatizemos uma vez mais, que não surgiram do ar, mas de uma longa e penosa luta pela sobrevivência. É graças a esta memória que o animal racionaliza seu comportamento, dando-lhe uma unidade lógica. Por outro lado, é esta memória biológica que faz possível a ação conjugada. Por exemplo, a divisão do trabalho entre as abelhas e formigas. Resumindo, podemos então dizer que a memória biológica permite ao animal preservar e usar as experiências passadas de sua espécie, e conjugar a ação, a fim de ter maiores condições de sobrevivência. A memória animal é uma aquisição técnica, pois liberta o organismo de um comportamento errático e ineficaz, dando-lhe uma lógica que é importantíssima na luta pela sobrevivência. A vida, tal como a conhecemos, seria impossível sem este mecanismo de preservação de experiências passadas. Digamos a mesma coisa de forma diferente: a memória, por ser um fator fundamental na organização da ação, é um fator fundamental de poder. Sem memória o poder não se organiza. Permanece ineficaz. Observamos ainda que o homem, por não ser programado biologicamente, tem de inventar sua própria programação. Mas para que ela tenha continuidade temporal e seja conjugada socialmente, deverá contar com um mecanismo que funcione como a memória gica. Isto é, um mecanismo que funcione, para o homem da mesma forma que a memória biológica funciona nos animais. É em resposta a esta necessidade que a linguagem é inventada. A linguagem é a memória coletiva da sociedade. É ela que provê as categorias fundamentais para que certo grupo social interprete o mundo, ou seja, para que ele diga como ele é. Mas exatamente por causa disto, por determinar a interpretação, a linguagem determinará também a maneira pela qual a referida comunidade irá organizar a sua ação. É lógico. Um sujeito (homem ou comunidade) age em resposta a determinado estímulo. Mas se o mundo, donde vêm os estímulos, é mediado pela linguagem, esta irá, de uma forma ou de outra, condicionar a resposta.

A linguagem e com ela a consciência, nasceu assim, de uma exigência prática: da luta pela sobrevivência, da necessidade de preservar e de socializar as experiências bem sucedidas. Mesmo as formulações mais abstratas e aparentemente divorciadas de qualquer motivo prático foram, de uma forma ou de outra, motivadas e provocadas por necessidades concretas. Porque "não é a vida que é determinada pela consciência, mas a consciência que é determinada pela vida".8

Por isto mesmo Berger e Luckmann chamam a nossa atenção para o fato de que, em decorrência do centro pragmático da consciência, a maior parte do conhecimento que nossa linguagem contém é do tipo receita.9 Que é receita? É uma série de ingredientes que devem ser preparados de certa forma, a fim de obtermos certo produto. O produto é o objeto do desejo, daquilo que queremos obter através de nossa ação. Dizemos que certo conhecimento é verdadeiro quando ele é eficaz para produzir o efeito que desejamos. Assim a categoria verdade é uma forma simbólica de nos referirmos ao prático e funcional. Como muito bem indica Piaget, "o conhecimento não é uma cópia do meio, mas antes um sistema de interações reais que refletem a organização auto-reguladora da vida em suas relações com as coisas".10 Esta constatação exige de nós uma atitude totalmente nova frente às ideias. A própria categoria de verdade, tão frequente em nossa linguagem, tende a dissociar a consciência de sua função prática, para relacioná-la com a percepção de relações ou idéias eternas. "A falsidade da filosofia — comenta Nietzsche —, consiste nisto: ao invés de ver na lógica e nas categorias da razão meios para a manipulação do mundo, para propósitos práticos, os homens passaram a ter nelas um critério de verdade ou de realidade."11 Constatação muito importante, especialmente no campo da comunicação. Idéias não são aceitas ou mantidas por serem verdadeiras mas por serem práticas. "À medida que seu conhecimento funciona satisfatoriamente, eu estou pronto a suspender quaisquer dúvidas sobre ele."12 A palavra verdade é o nome que damos, a posteriori, a uma idéia que antes já era vital para nós mesmos.

"Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo." Wittgenstein.


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1. E. Fromm, Marx's concept of man, Fredick Ungar Pub. Co., New York, 1964, p. 104.
2. Cf. J. Piaget, Biologie et connaissance, Gallimar, 1967, p. 401.
3. Borger e Seaborne, The psychology of learning, Penguin Books, England, 1969, p. 42.
4. Marshall McLuhan, Understanding media: The extensions of man, MacCraw Hill Book Co., New York, 1965, p. 57.
5. R. Merton, On theoretical sociology, The Free Press, New York, London, 1967, p. 145.
6. Gerth and Mills (eds.), From Max Weber, Oxford University Press, New York, 1967, p. 280.
7. E. Fromm, op. cit., p. 135.
8. Marx e Engels, The german ideology, Progress Publish, Moscow, 1964, p. 38.
9. Berger & Luckmann, The social construction of reality, Double-day Co., Garden City, N.Y., 1967, p. 42.
10. J. Piaget, op. cit. p. 39.
11. Cf. Hans Barth, Wahrheit und Ideoiogie, 1945. Citado por W. Stark, op. cit. p. 319.
12. Berger e Luckmann, op. cit. p. 44.


"Os limites da minha linguagem denotam os limites do meu mundo." Wittgenstein

Uma breve Introdução à Antropologia

Idéias de Rafael Santos

ANTROPOLOGIA
Origens históricas
• Surge “no processo de expansão do capitalismo, mais precisamente através do colonialismo e do imperialismo das nações ricas, que estendiam seus domínios a lugares remotos do mundo”;
• “Os primeiros antropólogos, cientistas que buscavam o conhecimento das sociedades ‘exóticas’, não coletavam seus dados de modo direto, baseavam-se em informações enviadas por missionários, mercadores, militares e funcionários coloniais”;
Evolucionismo Social
• Para primeiros cientistas (séc. XIX), o princípio básico era o de que, assim como os organismos vivos, também as sociedades humanas estariam sujeitas a um desenvolvimento evolutivo das mais “simples” ou “primitivas” até as mais “complexas” ou “adiantadas”;
• Para Henry Lewis Morgan o progresso da humanidade se constituía de três estágios: selvageria, barbárie, e civilização. James Frazer também criou uma escala evolutiva ao diferenciar magia, religião e ciência;
• o pensamento evolucionista deixou marcas profundas na história da sociedade e, ainda hoje, persiste no senso comum;
• No passado, o extermínio quase total das populações indígenas das Américas, assim como, mais recentemente, o regime de apartheid, que vigorou durante muitos anos na África do Sul, tinha respaldo nesse tipo de raciocínio;
• Nos dias de hoje ainda encontramos pessoas que baseiam suas opiniões em termos de culturas “atrasadas” ou “avançadas”;
TRABALHO DE CAMPO
• Foi nas primeiras décadas do século XX, com os trabalhos de Franz Boas (1858-1942) e Bronislaw Malinowski (1884-1942), que a prática da coleta de dados passou a ser feito pelo próprio antropólogo. Isso trouxe uma verdadeira revolução nas técnicas e nos métodos de pesquisa, assim como contribuiu decisivamente para a superação do etnocentrismo;
• Malinowski é considerado o revolucionário pioneiro do trabalho de campo, particularmente pela metodologia criada e aperfeiçoada por ele e denominada — observação participante;
OBSERVAÇÃO PARTICIPANTE
• “...nesse tipo de pesquisa, recomenda-se ao etnógrafo que de vez em quando deixe de lado sua máquina fotográfica, lápis e caderno e participe pessoalmente do que está acontecendo. Ele pode tomar parte nos jogos dos nativos, acompanhá-los em suas visitas e passeios, ou sentar-se com eles, ouvindo e participando das conversas”;
• As considerações sobre a complexidade das culturas nos levam a uma importante conclusão: a existência de uma imensa diversidade cultural - tanto em níveis regionais e nacionais como na sociedade global - implica na existência de diferenças, mas não de desigualdades culturais.
Educação a Distância – Antropologia – Aula 06
• Olhar o “Outro” é ver a si mesmo, não uma imagem refletida, mas uma imagem que, por ser diferente, acaba por nos revelar aspectos nossos que até então não havíamos percebido;
• este “Outro” é, no caso da Antropologia (diferente da psicologia ou da psicanálise), sempre algo coletivo: um grupo, uma classe social, uma tribo;
• O contato com este “Outro” desperta um “algo em-nós-mesmos” devido ao fato de existirem certos mecanismos comuns à humanidade e que podem ser desvendados pela própria reflexão antropológica;
• Uma das contribuições da antropologia é a constatação que existem processos simbólicos análogos em culturas diversas;
• a Antropologia define-se, entre outras coisas, como uma ciência de interpretação das culturas como sistemas simbólicos: política, saúde, doença, consumo, comunicação, parentesco, religião, mito, ritual, arte;
• todas as dimensões do fazer humano podem ser pesquisadas, comparadas, analisadas e interpretadas do ponto de vista antropológico: grupos étnicos, religiosos, diferentes orientações sexuais, estilos-de-vida urbana, minorias e “maiorias” excluídas, donas de casa, empresários, estudantes, professores, turistas.
Raça e Meio, Etnocentrismo
Em termos políticos o etnocentrismo traz dificuldades semelhantes àquelas do evolucionismo social e das explicações baseadas nas idéias de raça e meio. Quando as convicções de uma pessoa, de um grupo, de uma classe social, de uma região ou de um país, acerca de seus próprios valores, são consideradas superiores às de outras, corre-se o risco das imposições (às vezes até com o uso da força militar). Podemos também pensar em “sociocentrismo”, quando crenças e valores de nossas classes sociais são nossos parâmetros para julgarmos crenças e valores sociais distintos dos nossos, mas que existem dentro de nossa própria sociedade.
Educação a

antropologia

Rede das Palavras - Parte 2
ALVES, Rubem. A Rede das Palavras. In: O suspiro dos oprimidos. Paulinas: São Paulo, 1987. cap.1 pp 7-17
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Linguagem e valor

O biólogo Johannes von Uexkull sugere que cada organismo tenha uma forma específica de experimentar o mundo. Se pudéssemos adentrar cada forma de vida, para dali de dentro contemplar a natureza, veríamos quadros totalmente diferentes. Por que isto? Porque, segundo von Uexkull, a experiência é determinada pela forma anatômica de cada espécie.21 Entremos um pouco no campo da fantasia para tentar ver como é que o corpo determinaria a visão do mundo. Primeiro uma planta. Seu mundo imediato, mais próximo, pintado nas cores mais vivas: a terra, a água, o ar, o sol — tudo aquilo que se relaciona de forma direta com as necessidades de vida, contidas em suas estruturas anatômicas. Do centro para a periferia o quadro perderia subitamente a cor, reduzindo-se a um borrão indistinto. Casas, homens, automóveis — tudo aquilo que estivesse um pouco mais além do ambiente imediato da planta, tudo aquilo que não pudesse ser traduzido em termos de suas necessidades básicas de vida, não teria forma, cor ou significação. Agora, com uma borboleta. Seu mundo seria bem mais amplo, como conseqüência do próprio fato de que ela se move — não está fixada a um ponto. Movimento implica consciência de espaço, de primeiro plano, de segundo plano, de horizontes, de direção. E consciência de ritmo: quando se dará o movimento, quando pousar, quando levantar vôo. Seu ambiente imediato, colorido com tintas fortes: — o mundo das flores, do néctar. Na ocasião da reprodução, o cheiro do sexo, a exigência do instinto. No segundo plano encontraríamos as superfícies que compõem o seu espaço — sejam pedras, paredes, barrancos, o solo. E os sinais para orientar o seu ritmo — a luz, as trevas e outros. Mas, na medida em que nos afastamos do centro de cores vivas e de temperatura alta, relacionado com o problema fundamental do animal, ou seja, sua sobrevivência e expressão, e as cores vão perdendo sua intensidade, as formas se tornam borradas, até que se reduzem a um indiferenciado sem sentido. Poderíamos continuar indefinidamente a multiplicar exemplos para indicar os múltiplos mundos que as necessidades da constituição anatômica do animal determinam. Para o urubu, o cheiro de carniça em decomposição que provoca vômitos no homem é algo que traz água na boca... o animal (inclusive o homem) vê o mundo de acordo com o tipo de relação com a natureza necessária para a sua sobrevivência. O mundo é a natureza organizada do ponto de vista das necessidades de uma espécie, para que ela seja uma continuação natural do corpo. Poderíamos dizer, mergulhando ainda mais na fantasia, que a esperança de cada espécie viva é que a natureza seja nada menos que uma extensão do corpo. Se a planta tivesse religião e nós lhe perguntássemos acerca da realidade última, acerca da estrutura fundamental do mundo, ela nos responderia que é uma planta. "Se as plantas tivessem olhos, e capacidade para sentir gosto e para julgar, cada uma diria que a sua flor é a mais linda de todas", comenta Feuerbach. Porque a sua sobrevivência exige que o seu mundo seja estruturado à imagem de sua estrutura anatômica. Para a borboleta, igualmente, os deuses são borboletas. O absoluto, para o organismo, é a sua própria forma, assim como para o homem o seu absoluto é a sua própria natureza (Feuerbach). A experiência do mundo e a sua organização, podemos dizer, são reguladas por um cerne, um centro estruturante. Que constitui este centro? A necessidade vital, específica para cada animal. Tomando emprestado de Tillich uma expressão que ele usa num sentido puramente filosófico, diremos que aqui encontramos o ultimate concern, a necessidade fundamental — viver. É o caráter último, de suprema importância, a intensidade deste centro, que faz com que tudo o que se relacione imediata e diretamente com ele tenha cores vivas e temperatura quente. Tudo é importante. Tudo é vital. Está em jogo o valor último — a vida. Exatamente por isto aqui se encontra também a zona de maior inteligibilidade, de maior clareza cognitiva. Todos os mecanismos que regulam as trocas entre o organismo e seu mundo imediato são formas de conhecimento. A planta "conhece" a terra, o ar, o sol, a água de uma forma específica, que tem a ver com a preservação de sua vida. Como a borboleta conhece suas flores, seu espaço e seu tempo, de forma prática. Conhecimento que implica uma classificação do mundo em zonas de dor e zonas de prazer, que orientarão a atividade ou para a fuga ou para a aproximação. Deste centro estrutura-se o mundo. Mas à medida em que nos distanciamos dele notamos que há um esfriamento progressivo, que as cores não são mais tão intensas. Por quê? Porque o distanciamento implica que agora nos movemos numa área que não é imediata e diretamente relevante para o ultimate concern — a tarefa de viver. Até que atingimos uma área absolutamente indiferente ao animal, que nada significa para ele, pois nem o convida a aproximar-se (prazer) nem o leva a afastar-se (dor). Área que não provoca emoções: é in-significante, na experiência que o animal tem do mundo, por não ser significante para sua vida. Isto nos permite fazer uma observação parentética sobre a relação entre conhecimento objetivo e valor. Com muita razão a ciência elegeu a norma do conhecimento objetivo como o padrão do conhecimento rigoroso. Conhecimento objetivo; value free não distorcido pelas emoções e pelas condições emotivas do observador. Com isto, chegou-se a um dualismo que separa as emoções do conhecimento científico. Erro fundamental que ignora que é somente quando o observador está profundamente interessado no objeto, quando o objeto diz respeito à sua própria vida, que a sua atenção se concentra e se disciplina para o ato de conhecimento. Conhecimento desprovido de uma atitude valorativa (value-free) só é possível em relação àquela área periférica a que nos referimos. Chegaríamos, então, ao absurdo de que só se podem conhecer, objetivamente, aqueles objetos desprovidos de importância para o homem. Não é correto separar o conhecimento objetivo das emoções e dos valores. Ao contrário. A relação entre eles é dialética. É porque certo objeto ou situação se relaciona com meu ultimate concern que eu me debruço sobre ele para conhecê-lo. Mas para que o conhecer? Para que eu possa relacionar-me com ele de forma adequada.

O verdadeiro conhecimento objetivo brota de uma tiva e emotiva, e pretende ser uma ferramenta para que o homem integre eficazmente o referido objeto no seu projeto de dominar o mundo. Prático, portanto. Fechemos aqui o parêntesis.

O organismo, portanto, experimenta o mundo de forma seletiva. Isto é, sua percepção, sua cognição, se subordinam às relações vitais, reais, que se devem dar entre o corpo e o mundo, para que a vida continue. Vida é relação. Daí decorre o fato de que ela nunca vê o mundo como algo objetivo, desprovido de interesse, mas como mundo-em-relação-à-vida. E, inversamente, sempre se percebe como vida-em-relação-ao-mundo. Digamos a mesma coisa de uma forma diferente. O mundo que o organismo experimenta é sempre resposta a uma pergunta que este lhe dirige: promessa ou ameaça? Amigo ou inimigo? Prazer ou dor? Esta pergunta básica é fundamentalmente uma pergunta acerca do valor: a significação do mundo para o corpo. A pergunta acerca do valor é a pergunta sobre o tipo de relação. Daí podermos dizer que valor é relação.

Também o homem olha o mundo sob o impulso do interesse determinado por seu ultimate concern. Aristóteles começa a sua Metafísica dizendo que "todos os homens têm um impulso natural para obter conhecimento.22 Homem curioso, que se defronta com o mundo como quem se defronta com um enigma a ser decifrado, e que encontra, no ato de conhecer, um prazer único e final em si mesmo. O fato, entretanto, é que esta visão do homem como primariamente um curioso, representa uma ilusão de ótica. Porque a experiência primária que o homem tem do mundo não é a de um enigma intelectual a ser decifrado, mas de um problema vital, de cuja solução depende a sua sobrevivência. O ato de conhecer é uma resposta a um problema prático e tem de se traduzir numa orientação concreta da atividade humana, para que o homem triunfe sobre as circunstâncias. Como muito bem observa Dewey, "empiricamente as coisas são comoventes, trágicas, belas, cômicas, estabelecidas, perturbadas, confortáveis, desagradáveis, cruas, rudes, consoladoras, esplêndidas, aterrorizantes".23 O homem não as vê como fatos objetivos, mas como mensagens, como valores, como anúncios ou prenúncios, como promessas ou ameaças. O homem vê o mundo através de uma atitude valorativa, isto é, atitude que pergunta à realidade acerca de sua significação para o seu problema fundamental. Em outras palavras: a atitude valorativa pergunta primariamente não acerca da coisa (atitude objetiva), mas acerca da relação da coisa com o homem. Foi em torno desta constatação que Martin Buber construiu a sua filosofia. O mundo se constitui a partir da maneira pela qual o homem se relaciona com aquilo que o circunda. Mas o que nos vai interessar, de forma especial aqui, é que a palavra vem a existir como parte deste esforço para estabelecer relação e para criar valor. Ao dar nome a alguma coisa o homem está dizendo o que ela significa para ele: como se relaciona com ela, e como a vê em relação a si mesmo. Dar nome é atribuir significação. É um ato de organização do mundo em relação a mim. Neste contexto, é especialmente significativa a sugestão de J. G. Hamann24 de que a primeira palavra provavelmente "não foi nem substantivo nem verbo mas pelo menos um período inteiro". O homem aprende primeiro o todo: ele-em-relação-com-o-mundo. O ato de análise, de partir, de dividir, vem depois. O segredo da linguagem humana, assim, não é nem a esfera objetiva que ela pode indicar, nem simplesmente estados individuais subjetivos. Ao contrário: é a relação de um sujeito, indivíduo ou comunidade, com um espaço e um tempo.

Sugerimos atrás que relação é valor. Ao expressar uma relação, conseqüentemente, a palavra expressa um valor. E como ocorria no mundo experimentado pelos animais, também aqui constataremos que a palavra tem uma temperatura, uma coloração. Na medida em que a linguagem se aproxima do ponto central, do ultimate-concern do homem, veremos que ela estará mais carregada de emoção. A significação da palavra, para o homem, estará na razão direta da sua proximidade deste núcleo existencial. E inversamente: na medida em que se afasta dele, irá se tornando in-significante, desprovida de conteúdo humano.

É preciso entender que a atitude valorativa (isto é, que cria valores) é irracional. Irracional porque anterior à razão. Mas cuidado! É preciso não tomar esta afirmação como o ponto de partida para uma divisão da história da consciência em dois períodos. Primeiro, período valorativo, pré-científico, ideológico ou utópico, seguido e anulado pelo segundo, ou seja, o pensamento objetivo, a-ideológico, a-utópico, a-valorativo. O que queremos dizer, ao contrário, é que os valores não são deduzidos ou posteriores a um ato racional (que seria, neste caso, universal e uniforme para todos os homens!). A atitude valorativa é a mais fundamental no relacionamento do homem com o mundo. E são os valores que criam a necessidade e a possibilidade da razão. A razão é uma função dos valores. Como observa Max Weber, a razão é a racionalização de pressuposições irracionais. Mas o irracional aqui não é sinónimo de absurdo. Trata-se, antes, de uma opção quanto a um tipo de relação com o mundo. Fazer os valores posteriores à razão equivale a voltar a um idealismo que pressupõe a existência a priori das idéias. Mas isto parece não ser possível. Tudo parece sugerir que é a vida, com suas exigências de sobrevivência, que determina a consciência, e não o contrário. A palavra, portanto, é uma nota de rodapé à existência. Só pode ser compreendida por referência a ela. Esta é a razão por que a palavra tem de nos remeter sempre ao sujeito que a proferiu, indivíduo ou comunidade.

Não descobriremos sua significação por meio de uma comparação com uma "linguagem racional". Teremos de penetrar nas suas origens humanas: a biografia do que fala. De que nos fala a linguagem? De deuses? De anjos? De atos cosmogônicos? De fins apocalípticos? Fantasias? Ilusões? Sonhos? Foi a psicanálise que chamou nossa atenção para o fato de que o segredo da linguagem não é primariamente aquilo de que ela fala, mas antes, aquele que a fala. Ao invés de perguntar se os símbolos fantásticos, se as fantasias absurdas e se as construções da imaginação correspondem a determinados objetos, temos de tomar a linguagem como sintoma de que contém o segredo de alguém. Foi alguém, dominado por uma atitude valorativa específica, que usou aquela linguagem. Esta, como estrutura de valores, nos remete assim, sempre, a um sujeito que a construiu como ferramenta em sua luta para organizar um mundo significativo.

A linguagem sugere ainda mais: que os valores que ela contém são compartilháveis, comunicáveis, sociais. O próprio ato de pronunciar a palavra implica que ela não pode permanecer comigo. Alguém mais a entende. Na realidade, o ato de pessoas falarem e entenderem uma linguagem comum indica que participam de uma mesma estrutura de valores. São os valores que tornam a comunicação possível, pois, como já sugerimos atrás, são eles que dão significação às palavras. É lógico que não estou tomando linguagem no sentido amplo de língua portuguesa ou língua italiana. É possível que pessoas que falam uma mesma língua conversem por horas seguidas, sem haver um ato de comunicação. Por quê? Porque o conhecimento da relação entre as palavras e as coisas, que nos permite falar uma mesma língua, não garante que participemos de um mesmo universo de valores. É a linguagem comum, como estrutura de valores, que se constitui na base que poderíamos chamar de comunidade. Ela se constitui na pressuposição da participação (relação eu-isso, relação eu-tu), na pressuposição da interpretação (o que significa a situação em que nos encontramos, promessa ou ameaça?), e na pressuposição para a integração da ação (o que fazer?). Uma situação comum de classe social — participação numa mesma condição econômica — não é base suficiente para a comunidade. Porque a situação material, em si, não é significativa, Pode ser sentida e vivida de múltiplas formas diferentes. Ela só adquire significação através de uma linguagem que a interpreta como valor, seja positivo, seja negativo. E será esta linguagem que se constituirá na base da unidade da vivência de uma situação comum, e na base para a organização da ação frente à mesma. A alienação é um dos temas centrais do pensamento filosófico ocidental. Freqüentemente, entretanto, não nos damos conta de que este conceito encerra três sentidos bastante distintos.

O primeiro deles tem o seu lugar no contexto do discurso político-social. Quando, por exemplo, com a dissolução da ordem medieval, a sociedade emergiu como um problema a exigir uma explicação, o conceito de alienação foi usado para explicar a curiosa transição do indivíduo para a sociedade. Encarado de um ponto de vista psicológico, o indivíduo é um centro de interesses específicos e particulares, em busca da satisfação dos seus desejos. Colocados estes indivíduos, em toda a sua multiplicidade e variedade, numa situação de justaposição espacial uns em relação aos outros, não chegamos nunca ao conceito de ordem social. Ao contrário, teríamos uma situação de competição e luta selvagem em que cada um lutaria, em oposição aos outros, pela satisfação dos seus interesses: "guerra de todos contra todos". Como explicar que isto realmente não se dê? Como explicar que, indivíduos isolados, portadores de interesses distintos e conflitantes, se comportem de maneira razoavelmente harmônica e integrada, tal como observamos na ordem social? A resposta oferecida pelos teóricos do contrato social foi a seguinte: a sociedade só pode ser explicada se, no ato que a fundou, os indivíduos abandonaram voluntariamente os seus projetos individuais, oriundos de suas estruturas biológicas e psicológicas, e se entregaram a uma ordem superior, produto deste próprio ato de renúncia própria. Este ato de abandono da vontade individual em favor de uma vontade coletiva instaurada por meio de um contrato é o que se denomina alienação.

Neste contexto a alienação é um processo de natureza jurídica. O seu uso, na teoria social, deriva-se do seu uso no contexto das transações comerciais. Aqui, alienação significa abandono voluntário de propriedade e transferência dela a outra pessoa. Referimo-nos, por exemplo, à alienação de bens. O que é alienar um bem? É abdicar de sua posse em favor de outro. De maneira semelhante o indivíduo isolado abandona aquilo que lhe pertencia de direito, ou seja, sua vontade e interesses particulares, em favor de uma vontade coletiva, pois somente através deste ato se instaura a ordem.

Da mesma forma como o ato de alienação de uma propriedade é um fato objetivo, que pode ser descrito e analisado independentemente dos estados subjetivos daqueles que participam na transação, a alienação social é uma realidade objetiva que indica a autonomia da ordem social e a sua independência em relação aos indivíduos que dela participam, implicando sempre uma repressão das vontades individuais. Trata-se, portanto, de uma regra do pensar sociológico que proíbe ao cientista tentar construir o social a partir do psicológico. A ordem social é sui generis e deve ser encarada como se fosse uma coisa, movida por leis que lhe são específicas.

Esta visão da ordem social sofre uma transformação profunda quando se toma consciência do fato de que o contrato social não se estabelece por iguais: ele é imposto pelos fortes sobre os fracos. Se este é o caso somos então forçados a concluir que, ainda que seja verdade, toda ordem social exige certo grau de alienação; a alienação, na sua presente forma histórica não é ontologicamente necessária e poderá ser abolida se se processar uma inversão na distribuição de forças que mantém a sociedade sob sua organização atual. É isto que encontramos, por exemplo, nas análises da alienação da sociedade capitalista, no pensamento de Marx.

O segundo uso do conceito alienação encontra o seu lugar no discurso epistemológico. Contrariamente ao seu uso jurídico, a alienação se refere aqui especificamente aos estados subjetivos de indivíduos e grupos. Alienado é o indivíduo cujas idéias não constituem conhecimento efetivo do real, mas são antes expressões de estados emocionais individuais e coletivos. O discurso expressivo seria, assim, basicamente alienado, na medida em que ele confunde desejos com aquilo que é. Assim, os ídolos de Bacon, a ideologia em Marx, a neurose em Freud são expressões de alienação.

O programa da ciência Ocidental é a liquidação da alienação. Ela deseja instaurar um método que elimine totalmente a interferência de fatores subjetivos no processo de conhecimento — que o sujeito se cale para que o objeto fale; que a imaginação seja subordinada à observação. O ideal de objetividade, de conhecimento desinteressado e de liberdade face a valores (value-freedom) são expressões deste programa. A neurose deve ser conquistada pela "educação para a realidade" (Freud), a ideologia deve ceder lugar à ciência.

O terceiro sentido do conceito de alienação encontra o seu lugar nos discursos que buscam compreender a condição humana em toda a sua particularidade emocional e afetiva. Não mais os processos sociais, não mais o conhecimento objetivo do real, mas a dor, o sofrimento, a angústia. A alienação existe aqui nos discursos psicológico, existencialista, teológico. Qual é a condição humana? Vivemos num mundo amigo? Relaciona-mo-nos livremente com os outros? Ou não será verdade que nos encontramos frente a Outro alheio e hostil, que nos ameaça a todo o momento? Frente a este mundo alheio e hostil não nos resta outra alternativa a não ser a de nos escondermos dentro dos limites de nossa própria subjetividade, ao mesmo tempo em que operamos funcionalmente, por meio de uma disciplina repressiva auto-imposta, na esfera da exterioridade. Alienação significa, aqui, o caráter ameaçador da realidade externa, tanto de indivíduos quanto de estruturas; significa o movimento de recolhimento subjetivo; significa a artificialidade das regras de operação efetiva pelas quais nos comportamos socialmente. Significa, em última análise, o esfacelamento e a fragmentação da experiência humana, dividida entre uma identidade reprimida e uma funcionalidade imposta.

O conceito de alienação tem sido usado com grande freqüência para qualificar os fenômenos religiosos. E existe um sentido deste conceito que os próprios teóricos da religião aceitariam. Na verdade, a religião é sempre uma expressão de alienação, o "suspiro da criatura oprimida", um "protesto contra o sofrimento real". No paraíso e na cidade santa não existem templos: a religião só pode existir para o homem "depois da queda", o homem que perdeu o paraíso, o homem que não entrou na cidade santa... Considerada sob este prisma, a consciência religiosa contém sempre, ainda que de forma reprimida e inconsciente, um projeto de natureza política. A consciência que suspira em decorrência da opressão e que protesta contra o sofrimento, se projeta idealmente para a superação de tais condições. Não importa se os símbolos de que a consciência religiosa lança mão não sejam "cópias verdadeiras" do real. Na verdade, perguntaria a consciência religiosa, se as nossas representações se limitarem a descrever o dado, não estaremos condenados a uma postura conservadora e de ajustamento? Uma consciência que apenas descreve o real e é submissa a ele não está condenada, por esta mesma postura objetivista, a se reconciliar com ele? Ao contrário, se estamos em conflito com o real e projetamos a sua transformação não é necessário que criemos símbolos de sua própria superação, símbolos estes que, por se referirem a um futuro inexistente e proibido pelo presente, só são sustentados pelo desejo e a imaginação — símbolos que têm de ter um caráter religioso, portanto? Considerada sob tal ponto de vista, a alienação é o pressuposto da crítica e da transformação. Uma consciência não alienada, que se sente em casa no presente, é a consciência ajustada a ele e que, epistemologicamente, se apresentará como consciência objetiva e que nada mais faz que refletir o dado.

Não é esta, entretanto, a forma mais corrente da aplicação do conceito de alienação aos fenômenos religiosos. Quando se diz que religião é alienação, dois juízos negativos estão presentes: a) A consciência religiosa é falsa consciência, neurose ou ideologia. Ela se situa no campo da patologia do saber. Pode ser analisada como fenômeno curioso e exótico, mas vazia de qualquer sabedoria sobre o real. O cientista pode estudá-la mas não pode dar-lhe ouvidos. Na verdade, o propósito da ciência seria a liquidação da consciência religiosa. Uma consciência científica é uma consciência que, necessariamente, já ultrapassou a fase de infantilismo psíquico representada pela religião. Esta é, por exemplo, a postura do marxismo ortodoxo e da psicanálise. b) A consciência religiosa é sempre conservadora, em oposição à ciência, que seria crítica. E isto porque, segundo tal enfoque, a religião oferece, necessariamente, uma explicação metafísica e uma legitimação ideológica para o status quo. Assim sendo, a alienação religiosa seria um obstáculo à superação da alienação real. Restar-nos-ia perguntar se as formas históricas da religião nos permitem tal conclusão. É verdade que, freqüentemente, a religião é um aparato legitimador e conservador. Mas, será que isto esgota a sua verdade? O próprio Engels percebeu que este não era o caso, em oposição a Marx. E, inversamente, está longe da verdade que a consciência científica seja crítica e revolucionária. Na medida em que a ciência emerge, é sustentada e se desenvolve a partir de condições econômicas e políticas que, na maioria absoluta dos casos, são aquelas das classes dominantes, seria de espantar que ela pudesse ser crítica e revolucionária. O oposto parece prevalecer. Acobertada por uma ideologia de objetividade e de neutralidade face a valores, a ciência tem se colocado freqüentemente e sem pudor algum, ao lado das causas econômicas e políticas mais questionáveis.

Tal enfoque do fenômeno religioso tem conseqüências diretas sobre a pesquisa. Em primeiro lugar, sabe-se que os pressupostos teóricos de que fazemos uso na investigação científica tendem a predeterminar a nossa escolha dos dados considerados significativos. Assim, considerada a priori como alienação, a pesquisa sempre concluirá de forma que consubstancie as premissas de onde partiu. Em segundo lugar, se a religião é alienação, expressão da patologia político-social, ela deixa de ser considerada como fator significativo, digno de ser investigado. O que é determinante, em última análise, são os fatores infra-estruturais dos quais a religião é nada mais que um simples reflexo invertido. Ela é, assim, relegada ao campo dos epifenômenos.

Os capítulos que se seguem têm por objetivo contribuir para a elucidação deste problema. Eles nada mais são que notas para a leitura dos textos a que se referem, e têm um propósito eminentemente didático.


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21. Johannes von Uexkull, Theoretische biologie, 2.a ed., Berlim, 1938. Umwelt and Innenwelt der tiere, 2.a ed., Berlim, 1931.
22. Aristotle, Metaphysics, The University of Michigan Press, 1963, p. 3.
23. Cassirer, op. cit. p. 104.
24. Cf. Martin Buber, The knowledge of man, Harper and Row, New York, 1965, p. 116