sexta-feira, 10 de setembro de 2010

antropologia

Rede das Palavras - Parte 2
ALVES, Rubem. A Rede das Palavras. In: O suspiro dos oprimidos. Paulinas: São Paulo, 1987. cap.1 pp 7-17
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Linguagem e valor

O biólogo Johannes von Uexkull sugere que cada organismo tenha uma forma específica de experimentar o mundo. Se pudéssemos adentrar cada forma de vida, para dali de dentro contemplar a natureza, veríamos quadros totalmente diferentes. Por que isto? Porque, segundo von Uexkull, a experiência é determinada pela forma anatômica de cada espécie.21 Entremos um pouco no campo da fantasia para tentar ver como é que o corpo determinaria a visão do mundo. Primeiro uma planta. Seu mundo imediato, mais próximo, pintado nas cores mais vivas: a terra, a água, o ar, o sol — tudo aquilo que se relaciona de forma direta com as necessidades de vida, contidas em suas estruturas anatômicas. Do centro para a periferia o quadro perderia subitamente a cor, reduzindo-se a um borrão indistinto. Casas, homens, automóveis — tudo aquilo que estivesse um pouco mais além do ambiente imediato da planta, tudo aquilo que não pudesse ser traduzido em termos de suas necessidades básicas de vida, não teria forma, cor ou significação. Agora, com uma borboleta. Seu mundo seria bem mais amplo, como conseqüência do próprio fato de que ela se move — não está fixada a um ponto. Movimento implica consciência de espaço, de primeiro plano, de segundo plano, de horizontes, de direção. E consciência de ritmo: quando se dará o movimento, quando pousar, quando levantar vôo. Seu ambiente imediato, colorido com tintas fortes: — o mundo das flores, do néctar. Na ocasião da reprodução, o cheiro do sexo, a exigência do instinto. No segundo plano encontraríamos as superfícies que compõem o seu espaço — sejam pedras, paredes, barrancos, o solo. E os sinais para orientar o seu ritmo — a luz, as trevas e outros. Mas, na medida em que nos afastamos do centro de cores vivas e de temperatura alta, relacionado com o problema fundamental do animal, ou seja, sua sobrevivência e expressão, e as cores vão perdendo sua intensidade, as formas se tornam borradas, até que se reduzem a um indiferenciado sem sentido. Poderíamos continuar indefinidamente a multiplicar exemplos para indicar os múltiplos mundos que as necessidades da constituição anatômica do animal determinam. Para o urubu, o cheiro de carniça em decomposição que provoca vômitos no homem é algo que traz água na boca... o animal (inclusive o homem) vê o mundo de acordo com o tipo de relação com a natureza necessária para a sua sobrevivência. O mundo é a natureza organizada do ponto de vista das necessidades de uma espécie, para que ela seja uma continuação natural do corpo. Poderíamos dizer, mergulhando ainda mais na fantasia, que a esperança de cada espécie viva é que a natureza seja nada menos que uma extensão do corpo. Se a planta tivesse religião e nós lhe perguntássemos acerca da realidade última, acerca da estrutura fundamental do mundo, ela nos responderia que é uma planta. "Se as plantas tivessem olhos, e capacidade para sentir gosto e para julgar, cada uma diria que a sua flor é a mais linda de todas", comenta Feuerbach. Porque a sua sobrevivência exige que o seu mundo seja estruturado à imagem de sua estrutura anatômica. Para a borboleta, igualmente, os deuses são borboletas. O absoluto, para o organismo, é a sua própria forma, assim como para o homem o seu absoluto é a sua própria natureza (Feuerbach). A experiência do mundo e a sua organização, podemos dizer, são reguladas por um cerne, um centro estruturante. Que constitui este centro? A necessidade vital, específica para cada animal. Tomando emprestado de Tillich uma expressão que ele usa num sentido puramente filosófico, diremos que aqui encontramos o ultimate concern, a necessidade fundamental — viver. É o caráter último, de suprema importância, a intensidade deste centro, que faz com que tudo o que se relacione imediata e diretamente com ele tenha cores vivas e temperatura quente. Tudo é importante. Tudo é vital. Está em jogo o valor último — a vida. Exatamente por isto aqui se encontra também a zona de maior inteligibilidade, de maior clareza cognitiva. Todos os mecanismos que regulam as trocas entre o organismo e seu mundo imediato são formas de conhecimento. A planta "conhece" a terra, o ar, o sol, a água de uma forma específica, que tem a ver com a preservação de sua vida. Como a borboleta conhece suas flores, seu espaço e seu tempo, de forma prática. Conhecimento que implica uma classificação do mundo em zonas de dor e zonas de prazer, que orientarão a atividade ou para a fuga ou para a aproximação. Deste centro estrutura-se o mundo. Mas à medida em que nos distanciamos dele notamos que há um esfriamento progressivo, que as cores não são mais tão intensas. Por quê? Porque o distanciamento implica que agora nos movemos numa área que não é imediata e diretamente relevante para o ultimate concern — a tarefa de viver. Até que atingimos uma área absolutamente indiferente ao animal, que nada significa para ele, pois nem o convida a aproximar-se (prazer) nem o leva a afastar-se (dor). Área que não provoca emoções: é in-significante, na experiência que o animal tem do mundo, por não ser significante para sua vida. Isto nos permite fazer uma observação parentética sobre a relação entre conhecimento objetivo e valor. Com muita razão a ciência elegeu a norma do conhecimento objetivo como o padrão do conhecimento rigoroso. Conhecimento objetivo; value free não distorcido pelas emoções e pelas condições emotivas do observador. Com isto, chegou-se a um dualismo que separa as emoções do conhecimento científico. Erro fundamental que ignora que é somente quando o observador está profundamente interessado no objeto, quando o objeto diz respeito à sua própria vida, que a sua atenção se concentra e se disciplina para o ato de conhecimento. Conhecimento desprovido de uma atitude valorativa (value-free) só é possível em relação àquela área periférica a que nos referimos. Chegaríamos, então, ao absurdo de que só se podem conhecer, objetivamente, aqueles objetos desprovidos de importância para o homem. Não é correto separar o conhecimento objetivo das emoções e dos valores. Ao contrário. A relação entre eles é dialética. É porque certo objeto ou situação se relaciona com meu ultimate concern que eu me debruço sobre ele para conhecê-lo. Mas para que o conhecer? Para que eu possa relacionar-me com ele de forma adequada.

O verdadeiro conhecimento objetivo brota de uma tiva e emotiva, e pretende ser uma ferramenta para que o homem integre eficazmente o referido objeto no seu projeto de dominar o mundo. Prático, portanto. Fechemos aqui o parêntesis.

O organismo, portanto, experimenta o mundo de forma seletiva. Isto é, sua percepção, sua cognição, se subordinam às relações vitais, reais, que se devem dar entre o corpo e o mundo, para que a vida continue. Vida é relação. Daí decorre o fato de que ela nunca vê o mundo como algo objetivo, desprovido de interesse, mas como mundo-em-relação-à-vida. E, inversamente, sempre se percebe como vida-em-relação-ao-mundo. Digamos a mesma coisa de uma forma diferente. O mundo que o organismo experimenta é sempre resposta a uma pergunta que este lhe dirige: promessa ou ameaça? Amigo ou inimigo? Prazer ou dor? Esta pergunta básica é fundamentalmente uma pergunta acerca do valor: a significação do mundo para o corpo. A pergunta acerca do valor é a pergunta sobre o tipo de relação. Daí podermos dizer que valor é relação.

Também o homem olha o mundo sob o impulso do interesse determinado por seu ultimate concern. Aristóteles começa a sua Metafísica dizendo que "todos os homens têm um impulso natural para obter conhecimento.22 Homem curioso, que se defronta com o mundo como quem se defronta com um enigma a ser decifrado, e que encontra, no ato de conhecer, um prazer único e final em si mesmo. O fato, entretanto, é que esta visão do homem como primariamente um curioso, representa uma ilusão de ótica. Porque a experiência primária que o homem tem do mundo não é a de um enigma intelectual a ser decifrado, mas de um problema vital, de cuja solução depende a sua sobrevivência. O ato de conhecer é uma resposta a um problema prático e tem de se traduzir numa orientação concreta da atividade humana, para que o homem triunfe sobre as circunstâncias. Como muito bem observa Dewey, "empiricamente as coisas são comoventes, trágicas, belas, cômicas, estabelecidas, perturbadas, confortáveis, desagradáveis, cruas, rudes, consoladoras, esplêndidas, aterrorizantes".23 O homem não as vê como fatos objetivos, mas como mensagens, como valores, como anúncios ou prenúncios, como promessas ou ameaças. O homem vê o mundo através de uma atitude valorativa, isto é, atitude que pergunta à realidade acerca de sua significação para o seu problema fundamental. Em outras palavras: a atitude valorativa pergunta primariamente não acerca da coisa (atitude objetiva), mas acerca da relação da coisa com o homem. Foi em torno desta constatação que Martin Buber construiu a sua filosofia. O mundo se constitui a partir da maneira pela qual o homem se relaciona com aquilo que o circunda. Mas o que nos vai interessar, de forma especial aqui, é que a palavra vem a existir como parte deste esforço para estabelecer relação e para criar valor. Ao dar nome a alguma coisa o homem está dizendo o que ela significa para ele: como se relaciona com ela, e como a vê em relação a si mesmo. Dar nome é atribuir significação. É um ato de organização do mundo em relação a mim. Neste contexto, é especialmente significativa a sugestão de J. G. Hamann24 de que a primeira palavra provavelmente "não foi nem substantivo nem verbo mas pelo menos um período inteiro". O homem aprende primeiro o todo: ele-em-relação-com-o-mundo. O ato de análise, de partir, de dividir, vem depois. O segredo da linguagem humana, assim, não é nem a esfera objetiva que ela pode indicar, nem simplesmente estados individuais subjetivos. Ao contrário: é a relação de um sujeito, indivíduo ou comunidade, com um espaço e um tempo.

Sugerimos atrás que relação é valor. Ao expressar uma relação, conseqüentemente, a palavra expressa um valor. E como ocorria no mundo experimentado pelos animais, também aqui constataremos que a palavra tem uma temperatura, uma coloração. Na medida em que a linguagem se aproxima do ponto central, do ultimate-concern do homem, veremos que ela estará mais carregada de emoção. A significação da palavra, para o homem, estará na razão direta da sua proximidade deste núcleo existencial. E inversamente: na medida em que se afasta dele, irá se tornando in-significante, desprovida de conteúdo humano.

É preciso entender que a atitude valorativa (isto é, que cria valores) é irracional. Irracional porque anterior à razão. Mas cuidado! É preciso não tomar esta afirmação como o ponto de partida para uma divisão da história da consciência em dois períodos. Primeiro, período valorativo, pré-científico, ideológico ou utópico, seguido e anulado pelo segundo, ou seja, o pensamento objetivo, a-ideológico, a-utópico, a-valorativo. O que queremos dizer, ao contrário, é que os valores não são deduzidos ou posteriores a um ato racional (que seria, neste caso, universal e uniforme para todos os homens!). A atitude valorativa é a mais fundamental no relacionamento do homem com o mundo. E são os valores que criam a necessidade e a possibilidade da razão. A razão é uma função dos valores. Como observa Max Weber, a razão é a racionalização de pressuposições irracionais. Mas o irracional aqui não é sinónimo de absurdo. Trata-se, antes, de uma opção quanto a um tipo de relação com o mundo. Fazer os valores posteriores à razão equivale a voltar a um idealismo que pressupõe a existência a priori das idéias. Mas isto parece não ser possível. Tudo parece sugerir que é a vida, com suas exigências de sobrevivência, que determina a consciência, e não o contrário. A palavra, portanto, é uma nota de rodapé à existência. Só pode ser compreendida por referência a ela. Esta é a razão por que a palavra tem de nos remeter sempre ao sujeito que a proferiu, indivíduo ou comunidade.

Não descobriremos sua significação por meio de uma comparação com uma "linguagem racional". Teremos de penetrar nas suas origens humanas: a biografia do que fala. De que nos fala a linguagem? De deuses? De anjos? De atos cosmogônicos? De fins apocalípticos? Fantasias? Ilusões? Sonhos? Foi a psicanálise que chamou nossa atenção para o fato de que o segredo da linguagem não é primariamente aquilo de que ela fala, mas antes, aquele que a fala. Ao invés de perguntar se os símbolos fantásticos, se as fantasias absurdas e se as construções da imaginação correspondem a determinados objetos, temos de tomar a linguagem como sintoma de que contém o segredo de alguém. Foi alguém, dominado por uma atitude valorativa específica, que usou aquela linguagem. Esta, como estrutura de valores, nos remete assim, sempre, a um sujeito que a construiu como ferramenta em sua luta para organizar um mundo significativo.

A linguagem sugere ainda mais: que os valores que ela contém são compartilháveis, comunicáveis, sociais. O próprio ato de pronunciar a palavra implica que ela não pode permanecer comigo. Alguém mais a entende. Na realidade, o ato de pessoas falarem e entenderem uma linguagem comum indica que participam de uma mesma estrutura de valores. São os valores que tornam a comunicação possível, pois, como já sugerimos atrás, são eles que dão significação às palavras. É lógico que não estou tomando linguagem no sentido amplo de língua portuguesa ou língua italiana. É possível que pessoas que falam uma mesma língua conversem por horas seguidas, sem haver um ato de comunicação. Por quê? Porque o conhecimento da relação entre as palavras e as coisas, que nos permite falar uma mesma língua, não garante que participemos de um mesmo universo de valores. É a linguagem comum, como estrutura de valores, que se constitui na base que poderíamos chamar de comunidade. Ela se constitui na pressuposição da participação (relação eu-isso, relação eu-tu), na pressuposição da interpretação (o que significa a situação em que nos encontramos, promessa ou ameaça?), e na pressuposição para a integração da ação (o que fazer?). Uma situação comum de classe social — participação numa mesma condição econômica — não é base suficiente para a comunidade. Porque a situação material, em si, não é significativa, Pode ser sentida e vivida de múltiplas formas diferentes. Ela só adquire significação através de uma linguagem que a interpreta como valor, seja positivo, seja negativo. E será esta linguagem que se constituirá na base da unidade da vivência de uma situação comum, e na base para a organização da ação frente à mesma. A alienação é um dos temas centrais do pensamento filosófico ocidental. Freqüentemente, entretanto, não nos damos conta de que este conceito encerra três sentidos bastante distintos.

O primeiro deles tem o seu lugar no contexto do discurso político-social. Quando, por exemplo, com a dissolução da ordem medieval, a sociedade emergiu como um problema a exigir uma explicação, o conceito de alienação foi usado para explicar a curiosa transição do indivíduo para a sociedade. Encarado de um ponto de vista psicológico, o indivíduo é um centro de interesses específicos e particulares, em busca da satisfação dos seus desejos. Colocados estes indivíduos, em toda a sua multiplicidade e variedade, numa situação de justaposição espacial uns em relação aos outros, não chegamos nunca ao conceito de ordem social. Ao contrário, teríamos uma situação de competição e luta selvagem em que cada um lutaria, em oposição aos outros, pela satisfação dos seus interesses: "guerra de todos contra todos". Como explicar que isto realmente não se dê? Como explicar que, indivíduos isolados, portadores de interesses distintos e conflitantes, se comportem de maneira razoavelmente harmônica e integrada, tal como observamos na ordem social? A resposta oferecida pelos teóricos do contrato social foi a seguinte: a sociedade só pode ser explicada se, no ato que a fundou, os indivíduos abandonaram voluntariamente os seus projetos individuais, oriundos de suas estruturas biológicas e psicológicas, e se entregaram a uma ordem superior, produto deste próprio ato de renúncia própria. Este ato de abandono da vontade individual em favor de uma vontade coletiva instaurada por meio de um contrato é o que se denomina alienação.

Neste contexto a alienação é um processo de natureza jurídica. O seu uso, na teoria social, deriva-se do seu uso no contexto das transações comerciais. Aqui, alienação significa abandono voluntário de propriedade e transferência dela a outra pessoa. Referimo-nos, por exemplo, à alienação de bens. O que é alienar um bem? É abdicar de sua posse em favor de outro. De maneira semelhante o indivíduo isolado abandona aquilo que lhe pertencia de direito, ou seja, sua vontade e interesses particulares, em favor de uma vontade coletiva, pois somente através deste ato se instaura a ordem.

Da mesma forma como o ato de alienação de uma propriedade é um fato objetivo, que pode ser descrito e analisado independentemente dos estados subjetivos daqueles que participam na transação, a alienação social é uma realidade objetiva que indica a autonomia da ordem social e a sua independência em relação aos indivíduos que dela participam, implicando sempre uma repressão das vontades individuais. Trata-se, portanto, de uma regra do pensar sociológico que proíbe ao cientista tentar construir o social a partir do psicológico. A ordem social é sui generis e deve ser encarada como se fosse uma coisa, movida por leis que lhe são específicas.

Esta visão da ordem social sofre uma transformação profunda quando se toma consciência do fato de que o contrato social não se estabelece por iguais: ele é imposto pelos fortes sobre os fracos. Se este é o caso somos então forçados a concluir que, ainda que seja verdade, toda ordem social exige certo grau de alienação; a alienação, na sua presente forma histórica não é ontologicamente necessária e poderá ser abolida se se processar uma inversão na distribuição de forças que mantém a sociedade sob sua organização atual. É isto que encontramos, por exemplo, nas análises da alienação da sociedade capitalista, no pensamento de Marx.

O segundo uso do conceito alienação encontra o seu lugar no discurso epistemológico. Contrariamente ao seu uso jurídico, a alienação se refere aqui especificamente aos estados subjetivos de indivíduos e grupos. Alienado é o indivíduo cujas idéias não constituem conhecimento efetivo do real, mas são antes expressões de estados emocionais individuais e coletivos. O discurso expressivo seria, assim, basicamente alienado, na medida em que ele confunde desejos com aquilo que é. Assim, os ídolos de Bacon, a ideologia em Marx, a neurose em Freud são expressões de alienação.

O programa da ciência Ocidental é a liquidação da alienação. Ela deseja instaurar um método que elimine totalmente a interferência de fatores subjetivos no processo de conhecimento — que o sujeito se cale para que o objeto fale; que a imaginação seja subordinada à observação. O ideal de objetividade, de conhecimento desinteressado e de liberdade face a valores (value-freedom) são expressões deste programa. A neurose deve ser conquistada pela "educação para a realidade" (Freud), a ideologia deve ceder lugar à ciência.

O terceiro sentido do conceito de alienação encontra o seu lugar nos discursos que buscam compreender a condição humana em toda a sua particularidade emocional e afetiva. Não mais os processos sociais, não mais o conhecimento objetivo do real, mas a dor, o sofrimento, a angústia. A alienação existe aqui nos discursos psicológico, existencialista, teológico. Qual é a condição humana? Vivemos num mundo amigo? Relaciona-mo-nos livremente com os outros? Ou não será verdade que nos encontramos frente a Outro alheio e hostil, que nos ameaça a todo o momento? Frente a este mundo alheio e hostil não nos resta outra alternativa a não ser a de nos escondermos dentro dos limites de nossa própria subjetividade, ao mesmo tempo em que operamos funcionalmente, por meio de uma disciplina repressiva auto-imposta, na esfera da exterioridade. Alienação significa, aqui, o caráter ameaçador da realidade externa, tanto de indivíduos quanto de estruturas; significa o movimento de recolhimento subjetivo; significa a artificialidade das regras de operação efetiva pelas quais nos comportamos socialmente. Significa, em última análise, o esfacelamento e a fragmentação da experiência humana, dividida entre uma identidade reprimida e uma funcionalidade imposta.

O conceito de alienação tem sido usado com grande freqüência para qualificar os fenômenos religiosos. E existe um sentido deste conceito que os próprios teóricos da religião aceitariam. Na verdade, a religião é sempre uma expressão de alienação, o "suspiro da criatura oprimida", um "protesto contra o sofrimento real". No paraíso e na cidade santa não existem templos: a religião só pode existir para o homem "depois da queda", o homem que perdeu o paraíso, o homem que não entrou na cidade santa... Considerada sob este prisma, a consciência religiosa contém sempre, ainda que de forma reprimida e inconsciente, um projeto de natureza política. A consciência que suspira em decorrência da opressão e que protesta contra o sofrimento, se projeta idealmente para a superação de tais condições. Não importa se os símbolos de que a consciência religiosa lança mão não sejam "cópias verdadeiras" do real. Na verdade, perguntaria a consciência religiosa, se as nossas representações se limitarem a descrever o dado, não estaremos condenados a uma postura conservadora e de ajustamento? Uma consciência que apenas descreve o real e é submissa a ele não está condenada, por esta mesma postura objetivista, a se reconciliar com ele? Ao contrário, se estamos em conflito com o real e projetamos a sua transformação não é necessário que criemos símbolos de sua própria superação, símbolos estes que, por se referirem a um futuro inexistente e proibido pelo presente, só são sustentados pelo desejo e a imaginação — símbolos que têm de ter um caráter religioso, portanto? Considerada sob tal ponto de vista, a alienação é o pressuposto da crítica e da transformação. Uma consciência não alienada, que se sente em casa no presente, é a consciência ajustada a ele e que, epistemologicamente, se apresentará como consciência objetiva e que nada mais faz que refletir o dado.

Não é esta, entretanto, a forma mais corrente da aplicação do conceito de alienação aos fenômenos religiosos. Quando se diz que religião é alienação, dois juízos negativos estão presentes: a) A consciência religiosa é falsa consciência, neurose ou ideologia. Ela se situa no campo da patologia do saber. Pode ser analisada como fenômeno curioso e exótico, mas vazia de qualquer sabedoria sobre o real. O cientista pode estudá-la mas não pode dar-lhe ouvidos. Na verdade, o propósito da ciência seria a liquidação da consciência religiosa. Uma consciência científica é uma consciência que, necessariamente, já ultrapassou a fase de infantilismo psíquico representada pela religião. Esta é, por exemplo, a postura do marxismo ortodoxo e da psicanálise. b) A consciência religiosa é sempre conservadora, em oposição à ciência, que seria crítica. E isto porque, segundo tal enfoque, a religião oferece, necessariamente, uma explicação metafísica e uma legitimação ideológica para o status quo. Assim sendo, a alienação religiosa seria um obstáculo à superação da alienação real. Restar-nos-ia perguntar se as formas históricas da religião nos permitem tal conclusão. É verdade que, freqüentemente, a religião é um aparato legitimador e conservador. Mas, será que isto esgota a sua verdade? O próprio Engels percebeu que este não era o caso, em oposição a Marx. E, inversamente, está longe da verdade que a consciência científica seja crítica e revolucionária. Na medida em que a ciência emerge, é sustentada e se desenvolve a partir de condições econômicas e políticas que, na maioria absoluta dos casos, são aquelas das classes dominantes, seria de espantar que ela pudesse ser crítica e revolucionária. O oposto parece prevalecer. Acobertada por uma ideologia de objetividade e de neutralidade face a valores, a ciência tem se colocado freqüentemente e sem pudor algum, ao lado das causas econômicas e políticas mais questionáveis.

Tal enfoque do fenômeno religioso tem conseqüências diretas sobre a pesquisa. Em primeiro lugar, sabe-se que os pressupostos teóricos de que fazemos uso na investigação científica tendem a predeterminar a nossa escolha dos dados considerados significativos. Assim, considerada a priori como alienação, a pesquisa sempre concluirá de forma que consubstancie as premissas de onde partiu. Em segundo lugar, se a religião é alienação, expressão da patologia político-social, ela deixa de ser considerada como fator significativo, digno de ser investigado. O que é determinante, em última análise, são os fatores infra-estruturais dos quais a religião é nada mais que um simples reflexo invertido. Ela é, assim, relegada ao campo dos epifenômenos.

Os capítulos que se seguem têm por objetivo contribuir para a elucidação deste problema. Eles nada mais são que notas para a leitura dos textos a que se referem, e têm um propósito eminentemente didático.


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21. Johannes von Uexkull, Theoretische biologie, 2.a ed., Berlim, 1938. Umwelt and Innenwelt der tiere, 2.a ed., Berlim, 1931.
22. Aristotle, Metaphysics, The University of Michigan Press, 1963, p. 3.
23. Cassirer, op. cit. p. 104.
24. Cf. Martin Buber, The knowledge of man, Harper and Row, New York, 1965, p. 116

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