Barloewen fala das diferenças culturais entre as
Américas, descreve o ensaio como gênero literário
latino-americano por excelência e aposta numa
nova sociedade intercultural.
Constantin von Barloewen é professor de Antropologia Comparada da Escola
Superior de Design e Artes de Karlsruhe. Nascido em 1952 em Buenos Aires,
cresceu na Argentina e na Alemanha, deu aulas em várias universidades da Europa
e dos EUA e vive atualmente em Paris.
É autor de diversos livros, como Clown. Por uma Fenomenologia do Tropeço (Clown.
Zur Phänomenologie des Stolperns), História da Civilização e Modernidade na
América Latina (Kulturgeschichte und Modernität Lateinamerikas) e o recémpublicado
na Alemanha Antropologia da Globalização (Anthropologie der
Globalisierung). Leia abaixo a íntegra da entrevista com o escritor.
DW-WORLD.DE: Em seu livro Antropologia da Globalização, o senhor afirma que a
cultura latino-americana se distingue essencialmente da norte-americana, seja na
visão da morte, da natureza ou mesmo nas relações entre os gêneros. O diálogo
entre essas culturas é possível?
Constantin von Barloewen: Esse diálogo é, no mínimo, bastante difícil, porque
todas as constantes antropológicas – se é que se pode dizer assim – entre as
culturas latino e norte-americana são completamente distintas. A América Latina se
caracterizou até o século 19 pela Escolástica católica, muito metafísica, espiritual e
transcedental. Esse transcedentalismo se opõe à tradição cultural norte-americana
pragmática, empírica, lógica e analítica.
Quando foram fundadas as primeiras universidades na América Latina, no fim do
século 15 e início do 16, no México e no Peru, que formações eram oferecidas?
Além de Medicina, estudava-se Teologia, Filosofia, Ciências Humanas. E quase
nenhuma ciência natural ou empírica. Ao contrário da América do Norte, onde,
quando da fundação das primeiras universidades (Harvard, Princeton, Yale, etc),
cem anos depois da América do Sul, foram oferecidas, de início, formações em
Física e Química, por exemplo – ciências úteis e aplicáveis.
Obviamente a diferença hoje não é tão clara como no início
do período coloonial, isso é claro. Mas se você pensa nos
mal-entendidos, ou melhor, na falta de compreensão da
administração norte-americana em relação à América
Latina, essas diferenças ainda são visíveis. A falta de
compreensão da América do Norte frente à América do Sul
não se dá somente devido a fatores econômicos ou
Constantin von Barloewen:
diferenças culturais em foco
Educação a Distância – Antropologia – Aula 09
políticos, mas é, do ponto de vista antropológico, resultado de uma história cultural,
de vários séculos, completamente distinta entre as duas partes do continente.
Hoje, porém, a América Latina mobiliza-se cada vez mais através do Mercosul, por
exemplo, ou na oposição à Alca, a zona de livre comércio. Os sul-americanos
simplesmente não querem mais ser apenas mercados receptores dos produtos
norte-americanos. Hoje, forma-se cada vez mais uma identidade latino-americana
frente à hegemonia norte-americana.
Na sua opinião, o culto ao vencedor não faz parte da cultura latino-americana como
faz da norte-americana. O senhor diz que a América Latina, ao contrário, cultua mais
a "dignidade do derrotado". Poderia citar exemplos concretos que comprovem esse
hipótese?
Quando você toma os conceitos de pobreza e dignidade como constantes
antropológicas, há de se lembrar, por exemplo, das grandes obras de Diego
Velásquez [pintor espanhol, 1599–1660], nas quais um derrotado ou um pobre ainda
pode manter sua dignidade, mesmo não sendo materialmente rico. Isso seria
impensável na cultura norte-americana, que preza os grandes números, a vitória, o
sucesso material.
O senhor descreve uma certa "falta de lugar" do latino-americano, que, entre outros,
seria visível na literatura do continente. Poderia citar exemplos?
Penso nas primeiras obras de Ortega y Gasset. Ele esteve em 1917 pela primeira
vez na América Latina, viajou pela Argentina e escreveu maravilhosamente sobre os
"horizontes abertos", que o impressionaram muito. Penso também em Octavio Paz
com seu Labirinto da Solidão, em Borges com seu conto maravilhoso O Sul. E penso
também em filmes como os de Fernando Solanas sobre o sul ou de Carlos Sorín,
diretor argentino, com seu belíssimo O Cachorro (Bombón, el perro). Essa falta de
lugar, que é sempre associada ao sul, é específica da literatura e da arte latinoamericanas.
O senhor descreve o ensaio como sendo uma forma de expressão latino-americana
por excelência. Esse pensador ensaísta não existe da mesma forma no Velho
Mundo?
É claro que existem exemplos europeus de pensadores. No
entanto, a especificidade do latino-americano está nessa
coesão do pensamento entre literatura, política e ciência, na
mistura dessas três formas e também na relação com
questões sociais, com questionamentos sobre a justiça.
Carlos Fuentes, Octavio Paz, Pablo Neruda, Miguel Ángel
Asturias ou Guimarães Rosa (este último no Brasil) – foram
diplomatas. Todos, de certa forma, oscilavam entre a política
e a literatura. Ou seja, mesmo diante de todos os exemplos
europeus, continuo a acreditar que este tipo de pensador é
uma especificidade latino-americana.
Seus textos em Antropologia da Globalização se aproximam muito da forma do
ensaio. Suas descrições da pequena comunidade de Sosua, na República
Dominicana, chega a se assemelhar a um roteiro cinematográfico. O senhor acredita
que redige seus textos desta forma devido às suas raízes latino-americanas?
João Guimarães Rosa: um
entre os vários diplomatasescritores
latino-americanos
Educação a Distância – Antropologia – Aula 09
Com certeza. Embora seja preciso dizer que o caráter literário do texto sobre Sosua
foi uma opção consciente. Quando estive na Universidade de Harvard, em 1982, fui
convidado a ir à República Dominicana. Sosua era, naquela época, uma província
completamente desconhecida, cheia de imigrantes judeus. Hoje, o lugar se tornou,
infelizmente, quase um ponto turístico.
De forma geral, acredito que a inteligência intuitiva é muito superior e se aproxima,
no fim das contas, mais da empiria. Não acredito na chamada objetividade científica
nas ciências humanas, como a conhecemos nas ciências naturais. A inteligência
intuitiva é para mim, como antropólogo, muito importante.
O senhor afirma em seu livro acreditar que a América Latina pode se tornar "um
exemplo, no futuro, da superação das cancelas religiosas ou raciais" para o resto do
mundo. No entanto, em vários países, como no Brasil, o racismo é inerente à
sociedade.
Tenho consciência de que o Brasil não é, de forma alguma, apenas
a democracia étnica descrita com um excesso de otimismo por
Gilberto Freyre nos anos 1930. Por outro lado, não acredito mais
num mundo sob a hegemonia norte-americana, mesmo quando
eles insistem em espalhar canhões, como fizeram no Iraque.
Acredito num mundo multipolar, num mundo de arquipélagos, como
a América Latina já conhece há muito tempo. A América Latina é
caracterizada por uma lógica híbrida (talvez seja possível explicar
desta forma), onde o logos e o mito se unem e onde não há lugar
para um logocentrismo puro, para o racionalismo e para o
utilitarismo como na América do Norte.
O senhor diz acreditar na "incompatibilidade entre a cultura latino-americana e as
exigências de uma civilização tecnológica“. O que o senhor quer dizer exatamente
com isso?
A compatibilidade entre tecnologia e cultura é distinta nas Américas do Norte e
Latina. Da mesma forma como a esprititualidade também é uma outra, o que leva a
uma ética de trabalho também distinta. O caráter retórico da Constituição
democrática ilustra a situação. Na América Latina, copiou-se muito da Europa, mas
tudo aquilo era só papel, maculatura.
O continente tem, até hoje, uma relação debilitada com a modernindade. E as
constituições têm, com freqüência, até hoje, um caráter meramente retórico, sem
que haja uma identidade entre Constituição e realidade. É como uma cobertura
sobre o bolo. O bolo é a herança cultural dos 400 anos. A modernidade é apenas a
calda que cobre, mas não chega a adentrar o bolo.
Há em determinadas regiões da América Latina uma forma circular de lógica e uma
outra forma de racionalismo, outras metáforas antropológicas. Pacha mama, a mãe
natureza, tem outros significados. A natureza não está lá para ser militarmente
subjugada, como na América do Norte, mas o homem precisa se curvar à ela, devido
a seu caráter sagrado. A modernidade, neste caso, é, para mim, o mesmo que
violentar a tradição cultural.
Antropologia da
Globalização', de
Constantin von
Barloewen
Educação a Distância – Antropologia – Aula 09
O senhor defende uma identidade que seja fortemente permeada pela
interculturalidade. As tendências políticas na Europa, pelo menos em relação ao
não-europeu, parecem seguir outro caminho. Como o senhor vê essa situação?
Acredito que haja cada vez mais gente que não tem mais
uma raiz, mas sim um entrelaçamento de raízes e
identidades. Vivemos numa civilização na qual há cada vez
mais pessoas viajando – através do turismo, viajar se tornou
relativamente barato. É possível pertencer a diversas
culturas ao mesmo tempo.
Há identidades múltiplas e o homem não será nunca mais
membro de uma determinada cultura. Um habitante da
Indonésia, por exemplo, pode ser ao mesmo tempo
muçulmano, cidadão indonésio e amante da música clássica ocidental. Um japonês
pode facilmente amar os filmes neo-realistas italianos.
Na civilização atual, temos automaticamente várias identidades. Este é o ponto: a
identidade intercultural é sempre mais do que uma ou outra identidade. Ela é um
terceiro fator, algo novo muito mais abrangente, porque abarca em si várias
identidades e tradições culturais distintas.
O senhor cita Relato de um Certo Oriente, romance do escritor brasileiro Milton
Hatoum, como uma obra de traços transculturais, onde se cria uma ponte entre
Ocidente e Oriente. Tais cenários híbridos são também possíveis no chamado Velho
Mundo?
Acho que sim. Quando você pensa nos milhões de africanos do norte do continente
que vivem hoje na França, ou nos paquistaneses e hindus em Londres ou nos
mexicanos na América do Norte, percebe que está havendo uma deslocamento
elementar.
A provável eleição de Barack Obama à Presidência dos EUA é somente a expressão
dessa mudança de paradigmas, dessa nova atribuição de significado do mundo
multipolar. Obama como negro na Presidência iria simbolizar uma nova civilização.
Uma mudança geopolítica de paradigmas não apenas na economia, mas também
em toda a postura étnica dos EUA. Ele pode se transformar no rosto antropológico
de uma nova civilização mundial.
Soraia Vilela | www.dw-world.de | © Deutsche Welle.
Dw-world.de Deutsche Welle - Disponível em:
em: 24 de set. 2010, 15:00:00
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