Nilson Lage
O jornalismo é uma forma de conhecimento e, como tal, incumbe-se de atualizar o nível de informação da população com velocidade impossível de alcançar por outro meio. Sua necessidade social ampliou-se na medida em que as transformações políticas, sociais, científicas e tecnológicas se aceleraram, tornando inviável a atualização por outros processos, como contatos pessoais, demonstrações a auditórios etc.
O jornalismo seria, assim, responsável tanto pela amplitude quanto pela superficialidade do conhecimento que as pessoas têm, fora de suas áreas específicas de atuação. No entanto, a influência da atividade jornalística penetra mesmo em setores que dispõem de estruturas próprias de coleta de dados.
Uma pesquisa (SCHUCH, 1997), realizada no universo das principais empresas de Santa Catarina, revela que seus executivos baseiam-se em jornais (particularmente na Gazeta Mercantil) para formular decisões estratégicas. O mesmo se observa, por exemplo, na indústria norte-americana de espetáculos, com relação à crítica especializada, ou nos mercados de capitais, em que corriqueiramente informações da imprensa sobre desempenho de setores produtivos provocam reações antes de serem divulgadas oficialmente - por exemplo, nos balanços.
É óbvia a influência do jornalismo em processos políticos como as eleições. No entanto, a aferição dessa influência costuma ser destorcida por uma tendência genérica dos grupos de poder: eles consideram ótimo o jornalismo quando é a favor e péssimo quando é contra, independente da verdade ou falsidade dos conteúdos. Da perspectiva profissional, os critérios são outros: uma boa notícia não é a mais bem escrita ou a mais construtiva, mas, principalmente, a verdadeira. Parece óbvio que toda notícia apaixonante beneficia ou agrada a uns e prejudica ou desagrada a outros.
Neste aspecto, o jornalismo tem uma confiança tal em seu discurso que se aproxima da ciência: define verdade, à maneira de Isaac Israeli (Século IX), como adequação desse discurso à realidade. Não passou certamente pela cabeça de Isaac Newton, ao enunciar a Lei da Gravitação Universal, discutir se seria ou não conveniente para a humanidade continuar ignorando os princípios da gravidade, que sempre existiu. Da mesma forma, seria insensato imaginar que Alan Turing destruísse os originais de sua pesquisa sobre a máquina universal de processamento de informações, na década de 30, por antever que os computadores poderiam causar desemprego.
Excluídas algumas situações chamadas de éticas, em que o prejuízo é imediato e evidente (como pode ser o caso de negociações no curso de seqüestros ou do envolvimento de menores em crimes), a tendência dos jornalistas é considerar adequada a divulgação de informação de interesse público sobre que têm certeza. A dificuldade de distinguir o que é público e o que é privado ou de confrontar o que se supõe que as pessoas precisam ouvir e o que elas querem realmente ouvir não é problema só do jornalismo, mas, no geral, das sociedades em que é praticado.
No entanto, há diferenças importantes entre o discurso jornalístico e o discurso científico: uma delas é que o primeiro é um discurso de aparências. Qualquer que sejam as versões difundidas numa matéria de jornal ou revista, não importando a linha editorial, o mais importante são sempre os fatos. São estes o que os repórteres apuram e que valorizam. Já na ciência, o que se investiga são essências: leis, princípios e postulados que devem reger conjuntos de fatos; teorias que se sustentam enquanto não se consegue comprovar sua falsidade.
Quando o jornalismo tenta abordar essências da realidade, geralmente foge a suas características informativas, perde a novidade, recorre ao lugar comum e torna-se subliteratura. A literatura, a partir da forma da língua e da vaguidade dos conceitos, cuida de revelar verdades essenciais. O método não é a inferência dedutiva, como se pretende numa demonstração científica, mas o insight, a experiência, a indução. Assim se pode dizer que uma obra de ficção encerra realidade - visões pessoais, parciais e essenciais; esse percurso não é viável nas condições industriais em que se produz normalmente o jornalismo. O insight, a experiência e a indução também existem na ciência quando ela formula hipóteses e idealiza modelos, que são falseamentos geralmente baseados na abstração de algum ou alguns aspectos da realidade; a questão é que hipótese e modelos têm ser verificados e comprovados, o que não se exige da obra literária.
Em síntese, o jornalismo, como a ciência, pretende que a verdade objetiva existe e que é possível discorrer sobre ela; não investiga essências e assume as versões impostas pela ideologia, procurando preservar, no entanto, a inteireza dos fatos. Não trabalha, ao menos conscientemente, sobre a forma da língua para aprofundar ou desvelar algo que relata, nem se baseia na intuição, experiência ou capacidade indutiva do autor.
Pelo jornalismo passam discursos ideológicos que provêm, em maior escala, dos setores dominantes das sociedades. O mesmo ocorre com outros mídia, como a universidade, as escolas de ensino médio e primário, produtos artísticos e de recreação. No entanto, a visibilidade da presença desse discurso no jornalismo é maior, uma vez que suas mensagens são mais explícitas e se reportam a assuntos de interesse imediato.
No ensino, as turmas são relativamente homogêneas, há obrigatoriedade de freqüência e avaliações periódicas. A informação jornalística, pelo contrário, destina-se a público diversificado, disperso e pode ser ignorada ou omitida - basta não comprar o jornal, pô-lo de lado, desligar ou mudar a estação de rádio, de televisão, a página da Internet. Isso obriga o jornalismo a ser atraente, o que significa ser facilmente compreensível e conformar-se a pelo menos alguns dos valores, aspirações e fantasias de um público.
Enunciados jornalísticos estão sendo tomados, modernamente, como padrão da língua culta, tanto escrita quanto oral - embora, neste caso, haja apenas simulação de oralidade. Falas jornalísticas, no rádio ou na televisão, correspondem à leitura de textos feitos para serem lidos em voz alta ou, no caso da narrativa simultânea de eventos (como jogos desportivos ou desfiles de carnaval), à repetição de poucas estruturas modulares, com eventual recurso a suportes escritos e comentaristas especializados.
A pré-história do jornalismo
Os sistemas sociais de difusão de informação envolviam, nos estados clássicos, dois circuitos:
1.o oficial, constituído por mensageiros ou arautos que levavam à população decisões e conclamações do poder leigo; sacerdotes, incumbidos da tarefa de convencimento e da mobilização comunitária; e artistas (poetas e atores, em forma lingüística, mas também pintores, escultores e arquitetos), empenhados na exaltação do estado ou da fé; 2. o privado, constituído por trovadores que receberam, em épocas e países diferentes, diversas denominações (na Grécia, aedos); por eles transitavam histórias centradas em enredos fantásticos ou envolventes, geralmente com localização e temporalidade imprecisas. Pode-se acompanhar, ao longo dos anos, o trajeto de alguns desses contos, como As aventuras de Cid, ao longo de décadas, pela Europa medieval.
Sempre que o nível de alfabetização permitia, utilizavam-se suportes escritos. É o caso das Actae Durnae do Senado romano, ou dos Avvisi, mandados redigir por banqueiros e comerciantes nas cidades litorâneas da Itália do Século XIV. Em ambos os casos, os manuscritos eram colados nas paredes.
Passaram-se 150 anos entre a descoberta, na Europa, do tipos móveis, e o surgimento da imprensa periódica, que só ocorreu no início do Século XVII. Dois processos dessa época são considerados essenciais: a difusão da alfabetização e a expansão dos serviços de correios, que permitiam o tráfego mais rápido de informações. Um terceiro processo foi fundamental para a rápida difusão dos jornais: a luta da burguesia pelo poder.
Formas clássicas dos discursos não artísticos
Os discursos não-artísticos (isto é, não construídos com preocupação dominantemente estética) sempre compuseram a maior parte dos enunciados sociais. A preocupação de quem redige uma lei, um documento oficial ou científico distribui-se por igual entre fatores que podem ser considerados equivalentes às leis estabelecidas por Grice para a conversação.
A cada uma das máximas de Grice corresponde uma regra da estilística tradicional. Assim, a informação deve ser a necessária para os fins do documento e não excedente; ser verdadeira ou, no mínimo, verossímil (admitindo-se que alguns documentos, como algumas falas,são realmente maliciosos); ser relevante, não-ambígua, concisa, estruturar-se segundo preceitos lógicos e com a clareza necessária para ser compreendida pelo(s) destinatário(s).
Máximas de Grice
1.Máximas da quantidade
a. Faça sua contribuição tão informativa quanto necessário (para os propósitos reais da troca de informações);
b. Não faça sua contribuição mais informativa do que o necessário.
2. Máximas da qualidade
Tente fazer sua contribuição verdadeira
a. Não diga o que acredita ser falso;
b. Não diga algo de que você não tem adequada evidência.
3.Máxima da relação
Seja relevante
4.Máximas da maneira
Seja claro
a. Evite a obscuridade;
b. Evite expressões vagas e ambíguas;
c. Seja breve (evite a prolixidade);
d.Seja ordenado
Ao lado de textos construídos com esses cuidados, existem outros, com estrutura particular: os retóricos, preocupados com o convencimento. A oratória desenvolveu-se notavelmente nas cidades gregas em que as assembléias enfeixavam todo ou quase todo o poder. Prosperou em Roma, quer na forma de discursos políticos, dirigidos à elite, quer como conclamação às massas (já se chamavam assim, naquele tempo), quer como parte da decisão jurídica, em que se arbitra o que é, a partir de então, imposto como verdadeiro.
Até que ponto a retórica encerra verdade no sentido jornalístico ou científico? A pergunta não é cabível, uma vez que, no discurso retórico, o que está em jogo não é a verdade como adequação do enunciado à coisa, mas outras instâncias do conceito: uma verdade relativa, ou convicção, que expressa interesses, como na publicidade; ou então a verdade como revelação ou deslumbramento, como nos sermões religiosos. De fato, o que importa, no discurso de convencimento, é transferir essa convicção ou impor esse deslumbramento. Em um mundo mergulhado em enunciados retóricos, a realidade tende a conformar-se ao discurso, de modo que ele se consolida nas crenças das pessoas, transfere-se aos objetos de cultura - e se materializa, então.
O discurso retórico é voltado para as versões ou interpretações da realidade; o discurso informativo, essencialmente, para os fatos. Assim, não se pode dizer que haja má fé quando o Padre Antônio Vieira calcula em 20 milhões o número de índios existente no Maranhão, no século XVII; o que importa é a utilização desse dado, em que há evidente exagero, para a defesa da causa do não-extermínio, da não-escravidão e da evangelização dos índios. Da mesma forma, os promotores de causas modernas costumam ampliar a relevância de fenômenos como a prostituição infantil, a incidência da cárie dentária ou a destruição ecológica. As boas intenções, nessa linha de raciocínio, inocentariam a mentira.
O exagero é um recurso retórico entre outros - por exemplo, a repetição, o uso de efeitos fonéticos atraentes ou de associações analógicas (entre medo e escuridão, entre seqüência e conseqüência, entre revelação e claridade etc.). Discursos retóricos sempre foram esteticamente mais cuidados do que os informativos: a beleza e o ritmo fazem parte de seu poder de atrair. No entanto, os padrões da estética variam conforme a natureza dos públicos destinatários.
Pode-se admitir, como parece óbvio, que o jornalismo contemporâneo descende dos discursos informativos clássicos; e que a publicidade, da mesma forma, decorre dos discursos retóricos. No entanto, a relação não é tão simples: na verdade, o universo político e social é retórico, e o jornalismo está imerso nele; a forma de convivência é, aí, o discurso indireto, em que opiniões, interpretações ou versões são dadas como manifestas e, assim, citadas.
"O discurso citado", escreve Mikhail Bakhtin (BAKHTIN,1992, pp. 144 fls), "é o discurso no discurso, a enunciação na enunciação, mas é, ao mesmo tempo, um discurso sobre o discurso, uma enunciação sobre a enunciação". O discurso citado "é visto pelo falante como a enunciação de uma outra pessoa, completamente independente na origem, dotada de construção completa e situada fora do contexto narrativo". A partir dessa existência autônomoa, o discurso de outrem "passa para o contexto narrativo, conservando o seu conteúdo e ao menos rudimentos de sua integridade lingüística e de sua autonomia estrutural primitivas".
Bakhtin observa que quem apreende a enunciação de outrem "não é um ser mudo, privado de palavra, mas, ao contrário, um ser cheio de palavras interiores". No discurso jornalístico, pelo menos em suas formas canônicas (a notícia e a reportagem), as formas de citação usuais são o discurso direto e o indireto; outros processos, como o discurso indireto livre (em que o narrador assume a subjetividade do indivíduo citado) não são considerados legítimos. A única responsabilidade que o jornalista se impõe diante de uma citação (embora não seja sempre esse o entendimento legal) é que ela esteja conforme a essência (ou a forma, se entre aspas) do discurso citado. Ainda assim, quem cita escolhe o que cita e, de muitas maneiras, assume posições em face da citação.
O narrador pode interferir pela escolha do verbo dicendi ou proposicional, pela definição de circunstâncias para o trecho citado, pela seleção de trechos entre aspas etc. Pode suprimir o contexto da enunciação (extrair o texto do contexto) ou, pelo contrário, explicitá-lo - isto conforme suas intenções, ou quantas inferências adicionais imagine possibilitar ao leitor. Compare-se:
1. Em discurso direto:
a."Vamos recorrer no Judiciário até a última instância", disse o advogado.
b."Vamos recorrer no Judiciário até a última instância", advertiu o advogado.
c."Vamos recorrer no Judiciário até a última instância", ameaçou o advogado.
2. Em discurso indireto:
a.Marta Suplici disse que, em caráter pessoal, votará em Mário Covas.
b. Marta Suplici anunciou seu voto em Mário Covas, "em caráter pessoal".
c.Discordando da orientação do Diretório Nacional do PT, que recomendou não apoiar nenhum candidato ligado a Fernando Henrique Cardoso, Marta Suplici tornou pública sua "decisão pessoal" de votar em Mário Covas.
Os stile books (livros de normas) de alguns veículos preocupam-se com alguns desses recursos, vedando a utilização de verbos que encerram nítido juízo de valor, como ameaçar, vociferar ou disparar. No entanto, a preocupação manifesta com a exatidão da citação, a reiteração de seu conteúdo podem ser também recursos para desqualificá-la ou fornecer elementos para sua crítica:
1.O Ministro da Fazenda disse, ao longo da entrevista, que a prorrogação da CPMF "é indispensável", "mais do que necessária", "essencial" e que o aumento de 50 por cento da alíquota "não pode ser descartado", "é provável", "está quase decidido".
Combinada com um antecedente circunstancial - e a partir do princípio retórico de que "se a vem antes de b, a é a causa de b", ou post hoc ergo propter hoc - uma citação pode assumir o valor de discurso opinativo:
2. O parlamentar governista, cujo salário aumentará com a elevação do teto de vencimentos do funcionalismo, manifestou-se "plenamente favorável" à medida.
A citação é tomada, no discurso científico ou jurídico, tal como na retórica clássica, como base para o argumento de autoridade; é o que se passa, neste texto, com as citações de Bakhtin. Mas não é o caso do jornalismo contemporâneo, inserido no que o autor soviético chama de individualismo relativista. Adverte ele que "é importante determinar o peso específico dos discursos retórico, político ou jurídico na consciência de um dado grupo social em determinada época", bem como "a posição que um discurso citado ocupa na hierarquia social de valores".
A história moderna dos discursos não-artísticos
Na Idade Média, os discursos não-artísticos constituem documentos fundamentais para o estudo da evolução do latim vulgar e de sua diluição em dialetos comunitários e regionais por toda a Europa. Anais, atas, decretos, relatórios, proclamações, crônicas (episódios listados em ordem cronológica) constituem parte substancial da bibliografia dos dicionários etimológicos.
Com o renascimento e a formação dos estados nacionais modernos, as línguas nacionais foram impostas a áreas territoriais extensas através de mecanismos compulsórios e sistemas escolares que partiram da estruturação dessas línguas em documentos literários canônicos, como Os Lusíadas, de Camões, Dom Quixote, de Cervantes, peças de Shakespeare e poemas de Mílton, o teatro de Racine e Molière.
A literatura - pelo menos, essa literatura - passou a ser o padrão ao qual deveriam conformar-se os discursos institucionais. É por esse tempo que nasce o jornalismo, caracterizado, inicialmente, como publicismo e com a tarefa histórica de confrontar a aristocracia a serviço da ideologia burguesa. Os grandes jornalistas do Século XVIII foram escritores, nem sempre brilhantes, e críticos do poder aristocrático; consideravam-se e eram considerados portadores da verdade iluminista. O jornalismo era, ao mesmo tempo, retórico e literário.
O público era restrito, porque a alfabetização ainda não se difundira o bastante; os enunciados dirigiam-se a formadores de opinião, pessoas que, por definição, dispunham de alguma liderança na sociedade. Opinião, interpretação e fatos se misturavam, a ponto de ser difícil distingui-los. A própria divisão das matérias por assuntos - que daria origem às modernas editorias - demorou a acontecer.
As mudanças aceleraram-se no Século XIX, em parte por causa da mecanização da indústria gráfica e do surgimento da publicidade, que baixou o custo de produção dos jornais e reduziu de maneira radical o espaço para a opinião divergente, isto é, daquela contrária ao poder econômico; data dessa época o fim da censura de estado por toda a Europa. O principal fator para a mudança, no entanto, terá sido a generalização do ensino básico, por conta da revolução industrial.
O público multiplicou-se, alterando a demanda de informação. Dentre os vários caminhos tentados - novelas contadas no rodapé das páginas, desenhos e gravuras que dariam origem às charges e às histórias em quadrinhos, campanhas de opinião contundentes etc. - o que mais se mostrou frutífero foi a exploração do noticiário. Os novos leitores apreciavam histórias fantásticas e sentimentais, acontecimentos emocionantes e portentosos, relatos de países distantes, selvagens ou misteriosos e a ampliação de dramas do cotidiano.
Daí ao sensacionalismo foi um passo. A má qualidade literária - herdada da época da publicismo - somou-se, aí, ao exagero retórico para produzir relatos da realidade muito destorcidos e eventualmente mentirosos. Isso se tornaria mais evidente, no entanto, nos Estados Unidos que viveram, no fim do século passado, uma revolução industrial rápida e intensa, com a inserção na sociedade de levas e levas de imigrantes.
Foi na América que o sensacionalismo atingiu sua máxima ampliação. Tratava-se, aí, de integrar recém-chegados de várias procedências, muitos deles mal dominando o inglês. O modelo capitalista conduziu à concentração da indústria da informação, produzindo distorções tais que um dos magnatas da imprensa da época, Hearst, foi acusado de ter promovido a guerra contra a Espanha pelo domínio sobre Cuba em troca de privilégios de cobertura jornalística.
Foi também na América que o sensacionalismo foi contestado de maneira mais conseqüente. Para enfrentá-lo, criaram-se cursos de jornalismo nas universidades (o primeiro deles resultante de uma doação milionária de outro magnata da informação, Pulitzer) e procuraram-se formas de regulamentar a produção de matérias jornalísticas com alguns objetivos essenciais: (a) fixar procedimentos confiáveis de apuração de informações; (b) estabelecer padrões consensuais de qualidade; (c) restringir o código lingüístico de forma a permitir que notícias e reportagens possam ser produzidas rapidamente, com alta legibilidade e o mínimo de interferência das modas artísticas e literárias.
As estratégias empregadas para o atingimento dessas metas refletiram tendências típicas da época: influência dos métodos e critérios das ciências exatas, com traços que refletem posturas positivistas e funcionalistas; preocupação industrial e segmentação de tarefas, à maneira da organização do trabalho taylorista; pragmatismo quanto às linhas editoriais, temperado por uma tarefa de vigilância ética, transferida, geralmente, às corporações profissionais, e às escolas especializadas.
A despeito dessa origem datada, os procedimentos desenvolvidos então difundiram-se rapidamente por todos os países industrializados, com adaptações às culturas locais. Mesmo os críticos mais veementes do positivismo ou do funcionalismo - como é o caso dos sistemas de informação da Igreja católica ou da União Soviética, enquanto ela existiu - terminaram adotando as normas básicas da escola americana para a produção de notícias e reportagens jornalísticas. Elas são versáteis o bastante para conviver com diferentes ideologias; pode suportar linhas editoriais fundadas em hard news - como as notícias sobre política, ciências ou economia - ou em temas de recreação, como esportes e espetáculos. Tornadas signo da modernidade, chegaram ao Brasil meio século depois e levaram mais duas décadas para se implantarem aqui.
Na verdade, esse estilo que valoriza a objetividade não alcança por igual todos os gêneros do jornalismo. Magazines, por exemplo, continuam inserindo mais adjetivos e advérbios do que seria canonicamente desejável; o estilo Time combina um vocabulário básico restrito com vocábulos técnicos, palavras de gíria e adjetivação erudita. Editoriais e artigos aproximam-se mais da retórica clássica; seções especializadas assumem freqüentemente discursos intimistas ou excessivamente técnicos; a crônica e a crítica são gêneros que se aproximam da literatura.
No entanto, a linguagem básica do jornalismo tem ampla penetração social e influencia bastante outros discursos. Mantém relação constante com a linguagem coloquial e se tornou o padrão genérico dos enunciados impessoais e conteudísticos que predominam na cultura contemporânea - diante dos quais surgem como rebarbativos os discursos jurídicos tradicionais, a escrita oficial e cartorária e certas falas corporativas, como o economês.
O texto jornalístico no Brasil
Os primeiros veículos de informação periódica produzidos no Brasil antecedem de pouco a Independência. No primeiro império e no período das regências, o jornalismo era uma atividade publicista de alto risco, exercida em veículos geralmente de vida efêmera. Só no Segundo Império, em ambiente de mecenato, surgem algumas características peculiares de estilo. Jornalistas, na época, eram escritores, alguns notáveis, como Machado de Assis ou Raul Pompéia; adotavam, em geral, um texto literário simplificado, que se manifesta, por exemplo, nas Crônicas do Senado, de Machado.
Qualidade realmente literária é rara. Ela aparece, por exemplo, em Os sertões, de Euclides da Cunha. No entanto, esse extenso livro-reportagem levou dois anos para ser escrito, enquanto o autor, que era engenheiro, construía uma ponte, em São José do Rio Pardo, São Paulo, e teve dois pré-textos: os telegramas que enviou ao Estado de São Paulo, acompanhando a guerra em Canudos, e o manuscrito Diário de uma expedição, que só seria publicado em 1935.
O divórcio entre a língua escrita e a falada - entre o vocabulário e os usos gramaticais de uma e outra - agravaram-se no início do Século XX. Sob influência do parnasianismo francês, exaltava-se o estilo empolado dos discursos de Rui Barbosa, cujo conteúdo jurídico, no entanto, parece hoje modesto. Essa mesma presunção de qualidade artística se reflete nos artigos médicos relacionados com a campanha contra as doenças tropicais liderada por Osvaldo Cruz, nas crônicas e romances de Coelho Neto ou Humberto de Campos, nas reportagens - importantes como documento - de João do Rio (Paulo Barreto), notável jornalista do Rio de Janeiro da República velha.
Com a profissionalização incipiente e a presença de corretores de anúncios nas redações - as agências de publicidade só começariam a aparecer na década de 20 - o nível sociocultural dos jornalistas sofreu, na média, queda acentuada. A cobertura de fatos urbanos e policiais, particularmente, evidencia esse fato: tende a incorporar a gíria dos rábulas e policiais, chamando os acusados de indigitados, as pessoas pobres (só estas) de indivíduos, os carros oficiais de viaturas. Ao mesmo tempo, a presunção literária nomeava ruas e avenidas como artérias, vereadores como edis, motoristas como chauffeurs etc. A hierarquia social rígida aparecia no tratamento de Sua Excelência dado às autoridades e de doutor a qualquer pessoa influente.
Os poucos escritores dessa época lidos ainda hoje eram acusados por seus contemporâneos de praticar um estilo pobre e vulgar. É o caso de Lima Barreto, de Monteiro Lobato e de Oswald de Andrade (este, desde muito antes de se tornar conhecido, com a Semana de Arte Moderna de 1922).
O modernismo literário demorou a se transplantar para o discurso jornalístico; a maioria das propostas da Semana, que pretendia justamente aproximar os enunciados artísticos da fala comum, só chegou efetivamente aos jornais somadas à importação estilística do modelo americano, a partir da década de 50 - embora houvesse tentativas anteriores, principalmente gráficas e em publicações de circulação restrita.
Uma das razões do abandono dos paradigmas literários no jornalismo, com a industrialização, é uma nova compreensão dos objetivos do ensino e da prática da língua nacional. A questão central é que dificilmente alguém será chamado, na prática, a exercer a competência compatível com um Camões, um Machado, ou para citar autor mais recente, de um Graciliano Ramos, ele mesmo revisor de originas do Correio da Manhã, do Rio, na década de 40. Pessoas em geral não escrevem ou falam literatura, isto é, língua em forma de poesia ou narrativa artística; o que se exige delas é que se expressem com clareza, concisão, correção e, subsidiariamente, elegância, em discursos e textos voltados para a comunicação de conteúdos referenciais.
O estudo da "língua culta"
Presentemente, os estudos literários ampliam-se, associando-se à análise de discursos e à semiologia na tentativa de construir um conhecimento que dê conta de atividades artísticas envolvendo línguas e imagens dinâmicas, como o teatro, o cinema ou os quadrinhos. Já a Lingüística contemporânea valoriza extraordinariamente o estudo das formas orais e dialetais das línguas. Isso se deve a uma série de fatores:
a.línguas ágrafas ocuparam o espaço acadêmico antes dedicado às letras clássicas e à Lingüística comparada, principalmente a partir da tarefa de descrever idiomas indígenas, a que se obrigaram os lingüistas desde a contratação de Franz Boas pelo governo americano, com essa finalidade, no século passado e, depois, com os investimentos feitos na área de antropologia;
b.algumas tendências modernas, como a Gramática Gerativa de Noam Chomsky, buscam uma gramática universal (UG), fundada na correspondência de uma forma lógica (LF) e uma forma fonética (PF) e cujo fundamento é a aquisição de linguagem (oral) pelas crianças, atribuída a uma faculdade mental inata. Isto chamou a atenção para o fato óbvio de que as línguas são primariamente eventos sonoros;
c.a fonética teve desenvolvimento extraordinário e se tornou a única área da especialidade que parece a ponto de se completar como ciência, produzindo conhecimento que se transfere à medicina e à informática.
Terá sentido, dentro desse contexto, estudar uma forma de língua escrita, que no sentido clássico se chamaria de "culta" e, ainda mais, não literária? Há duas respostas possíveis. Uma refere-se a questões essencialmente técnicas - facilidades operacionais que o estudo da língua escrita simplificada em que os jornalistas se expressam oferece para uma compreensão formal documentada do idioma. Esmiuçaremos isso na próxima aula.
Outra resposta tem que ver com um raciocínio de outra natureza. Ele nos remete a um anúncio de banco que a televisão veicula; nele, um ator declara que seu apoio à globalização e comenta: "um só mundo, falando a mesma língua". Como aconteceu sobre o Império romano, o inglês, novo latim, tende a ser língua universal e, assim sendo, substituir os idiomas nacionais como língua de cultura.
Dentre as línguas nacionais, o português é uma das mais vulneráveis: é falado por um grupo de países pobres, está sendo varrido da Ásia e, no entanto, materializa uma bela tradição cultural. A sobrevivência da língua, em sua forma escrita e "culta", relaciona-se com a sobrevivência do estado nacional, dentro do qual construímos nossa identidade, validamos nossos poucos direitos civis, as habilitações profissionais e acadêmicas.
Preservar o português em suas formas escritas é, assim, como observa o Prêmio Nobel de Literatura José Saramago, uma atitude política de sentido, a essa altura, fortemente contestador.
http://www.jornalismo.ufsc.br/
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