sexta-feira, 21 de maio de 2010

humor

Quadro de Humor - TELEVISÃO


“CÃO SEM COLEIRA”


ESCRITO POR
DORIVAL COUTINHO DA SILVA
(Copyright © 2008 by Dorival Coutinho da Silva)





PERSONAGENS


FALAM FIGURAÇÃO COM POUCA FALA

1. Santinha 1. Enfermeira
2. Flora (mãe de Santinha) 2. Marido (de Flora)



AMBIENTAÇÃO


Quarto de hospital com equipamentos e móveis básicos: leito hospitalar, mesa de cabeceira, suporte para soro com recipiente de soro e mangueira em uso, poltrona ou sofá-cama para visita (entre outras coisas, há sobre a mesa um frasco conta-gotas, meio copo de água e uma revista).

NÚMERO DE CENAS = 2 DURAÇÃO = 12/15 min.

ÉPOCA = Atual LOCAL = São Paulo

SONS EM OFF

1. Final da cena 2 = mugido de boi
2. Percussão e outros, acompanhando os gemidos (ritmados) de Flora.

“CÃO SEM COLEIRA”

CENA 1 - QUARTO DE HOSPITAL/INT/DIA

FLORA, 40 anos, está deitada no leito, com a cabeceira um pouco inclinada. Vestindo camisolão hospitalar branco, ela está descoberta. Usa tipóia no braço esquerdo, há uma atadura cobrindo o cotovelo e a perna direita está enfaixada desde o pé até o joelho. Flora está recebendo soro no braço direito.

A ENFERMEIRA, 25 anos, entra no quarto e se dirige ao leito.

ENFERMEIRA — Como vai, dona Flora?
FLORA — (Desanimada) Xiii! Desse jeito não vou a lugar nenhum. Mas nem ao banheiro fazer xixi.
ENFERMEIRA — (Colocando o termômetro na axila da paciente) Vamos ver se a febre baixou... Prontinho... Volto já já pra conferir, viu?

A enfermeira dirige-se à porta para sair, abre-a e depara-se com a menina SANTINHA, 12 anos. A enfermeira cumprimenta a menina com a cabeça e SAI. Santinha entra sozinha no quarto.

FLORA — (Feliz) Fifi...
SANTINHA — (Indo ao leito da mãe) Mamã...
FLORA — (Sem se mover) Fifi...
SANTINHA — (Beijando o rosto da mãe) Mamã... (PAUSA) Quando você volta pra casa?
FLORA — Não sei ainda, filha. Depois da primeira pancada, a gente fica igual carro velho. Às vezes anda, às vezes não anda... E sempre acaba na oficina.
SANTINHA — (Rindo, aponta para o frasco de soro) É por isso que estão botando gasolina no carro, mamãe?
FLORA — O motor falhou, ficou fraco. Quase me levaram da oficina pro desmanche. Só mesmo o soro pra dar jeito. É meu alimento, sabia?
SANTINHA — Que bom, mamãe! Em vez de verdura, que eu detesto, você podia me dar soro.
FLORA — Vira essa boca pra lá, filha.
SANTINHA — Se não como verdura, você fala que vou ficar doente. Se ficar doente, vou precisar de soro. Então prefiro tomar soro antes de ficar doente!
FLORA — Que tal comer verdura e não ficar doente?
SANTINHA — (Faz careta) Ih! Credo! (PAUSA) A Giselda mandou lembrança, viu? Disse que você não precisa se preocupar com a casa.
FLORA — Tá bom, filha... Vem cá, vem. Me dá outro beijo. Eu tava morrendo de saudade... (Olha em torno) Ué! Cadê o papai? Ele não veio com você?
SANTINHA — (Sentando-se na poltrona) Veio sim, mas não pôde ficar. Ligaram pra ele lá do escritório. Parece que tem uma reunião urgente. Mas disse que volta mais tarde pra me pegar.
FLORA — Reunião no escritório? Estranho... Reunião com quem, se hoje é sábado?!
SANTINHA — Ouvi papai falando no celular. (Encosta a mão fechada no ouvido e imita o pai) Ah, já tá me esperando? Onde? Sei, entendi... motel... Tô de saída. (TOM ) Acho que a reunião é com o “seu” Motel, mamãe.

Santinha levanta-se e vai folhear uma revista que viu sobre a mesa de cabeceira.
FLORA — Acho que você não entendeu direito, filha. Deve ser “seu” Manuel, “seu” Noel... Sei lá... (TOM) Agora, se você estiver certa, ele me paga!... Vou torcer o pescoço do palhaço.
SANTINHA — O que disse, mamãe?
FLORA — Ahn?... (Apalpando o cotovelo) Não pára de doer o osso do braço. (PAUSA) E a Giselda, não quis vir com vocês?
SANTINHA — Ela veio com a gente. Papai deixou ela no centro. Ia pagar umas contas pra ele.

Santinha aproxima-se do leito, permanecendo de pé.

FLORA — (Cismada) Hum... Isso tá me cheirando a caca de galinha.
SANTINHA — (Procurando algo no chão) Num tô sentindo nada não...
FLORA — Deixa pra lá, filha. (Coloca a mão direita sobre a cabeça e fecha os olhos) Que dorzinha de cabeça mais enjoada... (PAUSA) Ai ui, ai ai ui...Ui ai, ui ui ai... (Percussão em off)

Com a revista na mão, Santinha agita os braços erguidos e balança o corpo no ritmo dos gemidos da mãe. Dançando, ela avança dois passos e retorna à cabeceira ao final dos gemidos.
A enfermeira ENTRA. Retira o termômetro da paciente e confere a temperatura.
Santinha está folheando a revista perto da mesa de cabeceira.

ENFERMEIRA — 37 graus... Ótimo, a febre já reduziu bastante. Se precisar de mim, é só chamar, tá? (SAI).
SANTINHA — A enfermeira deu injeção, mãe?
FLORA — Não. Veio tirar o termômetro, filha. Pra ver se a febre diminuiu.
SANTINHA — Gozado... Papai também mediu a temperatura da empregada, mas não usou termômetro não.
FLORA — O quê? Mediu a temperatura da Giselda? Ele nunca mediu a minha?
SANTINHA — Mas você nunca precisou, mamãe.
FLORA — Como não?
SANTINHA — Ora!... Quantas vezes ouvi o papai falar que você é muito fria!
FLORA — Falou isso pra quem, Santinha? Pra mim é que não foi.
SANTINHA — Pra Giselda... pra filha do síndico... pra vizinha do apartamento 12... pra...
FLORA — (CORTA) Ah, ele quis dizer que sou calma, que sou controlada... É nesse sentido, Santinha. Claro, só pode ser!... Agora me conta essa história da Giselda.
SANTINHA — Foi antes de ontem, de ontem, quer dizer... Ah! faz três dias... Quando cheguei da escola, papai tava no sofá do lado da Giselda, com a mão dentro da blusa dela. Perguntei o que ele fazia e ele disse que tava medindo a temperatura dela, porque a coitada tava com febre. Mas ele não usou termômetro não, mãe. Usou a mão mesmo!
FLORA — Acho que você é que não viu o termômetro, Santinha. Em casa a gente tem um... uns quatro. (TOM) É isso! Você se enganou... Claro, só pode ser! (PAUSA) Mas, e aí, filha, papai tá cuidando bem de você?
SANTINHA — Muito bem, mamãe, até demais. Ainda bem que a Giselda também tá cuidando tão bem dele! Até café na cama ela leva, mamãe!
FLORA — (surpresa) Não me diga! E o que mais, Santinha?
SANTINHA — Ela dá nó na gravata, faz a barba dele, limpa os sapatos, corta as unhas, dá os comprimidos na hora certa... É muito boazinha pra ele, só vendo!
FLORA — Ah, meu Deus, ainda parto a cara desse safado!
SANTINHA — O quê, mãe?
FLORA — Ahn?... Ele não pára de ser paparicado... (Indignada) Péra aí, Santinha! Você disse café na cama?
SANTINHA — É sim, mãe. Uma bandeja cheia de coisa boa. Todos os dias!
FLORA — Por que café na cama, se a Giselda chega às nove?
SANTINHA — Papai falou que a Giselda agora tá fazendo hora extra. Chega mais cedo e sai mais tarde, porque tem muito serviço lá. Quando papai me acorda cedinho, ela já tá arrumando a cama dele. A Giselda, coitada, trabalha tanto que outro dia passou mal mesmo.
FLORA — (Fecha os olhos, colocando a mão direita na testa) De novo, essa dorzinha de cabeça esquisita... (PAUSA) Ai ui, ai ai ui...Ui ai, ui ui ai... (Percussão em off)

De pé, à cabeceira, Santinha dança ao som ritmado dos gemidos.

SANTINHA — (preocupada) Melhorou, mãe?
FLORA — Mais ou menos, filha. Não sei o que tá acontecendo!... (TOM) Me conta, filha... No dia que a Giselda passou mal... ela não foi trabalhar?
SANTINHA — Foi, mãe. Papai é que não foi trabalhar nesse dia. Também, pudera!... Ele tava tão preocupado, nervoso, que até ficou cuidando dela. Quando cheguei da escola, Giselda tava de cama.
FLORA — (Arregala os olhos) Na minha cama?!
SANTINHA — É. Quando entrei no quarto, Giselda tava deitada e papai abanando ela. Nossa! Giselda tava tão suada, mãe! A camisola tava toda ensopada.
FLORA — (Quase gritando) Camisola?!

SANTINHA — É. Aquela vermelha, mãe, aquela que você adora.
FLORA — A minha camisola?! (Tentando levantar-se) Pra mim chega! Vou pedir alta agora mesmo. Saio daqui nem que seja de quatro.
SANTINHA – Por que às quatro, mamãe. Não pode sair agora?
FLORA – Você não entendeu, fifi. Ah, deixa pra lá...

Flora tenta se movimentar na cama, sente dor e volta à posição anterior.

SANTINHA — Não fique preocupada, mãe, Giselda melhorou, já tá cuidando da casa. E depois, papai também sabe se virar, ele ajuda Giselda em tudo.
FLORA — Cafajeste! Nunca fritou um ovo, nunca lavou um prato. Traidor duma figa!
SANTINHA — O quê?
FLORA — Essa dor me castiga, filha. (Mão na testa) Ai, minha cabeça! Agora piorou. Dói demais. Chama a enfermeira, filha, chama!

Santinha dá alguns passos em direção à porta fechada. Coloca a mão em concha diante da boca.

SANTINHA — (Grita a todo fôlego) Enfermeiraaaaaaaaa!
FLORA — Ai, minha cabeça! Pára de gritar, menina. É só apertar o botão aqui na cabeceira.
SANTINHA — Ah, é? (Vai à cabeceira) Ela escuta o botão, mãe?

A enfermeira ENTRA rapidamente.

FLORA — (PARA A ENFERMEIRA) Minha cabeça vai explodir!
ENFERMEIRA — Calma, calma. Primeiro vou tirar o soro... (retira a agulha do braço da paciente). Pronto.
FLORA — (De olhos fechados) Ai ui, ai ai ui...Ui ai, ui ui ai... (percussão em off)

Dançando ao ritmo dos gemidos, a enfermeira dirige-se à mesinha de cabeceira. Ao lado da cama, Santinha também dança.
Quando Flora pára de gemer, a filha senta-se na poltrona.
A enfermeira pinga algumas gotas em meio copo d’água e leva à paciente. Flora toma o remédio e permanece com o copo vazio na mão esquerda.

ENFERMEIRA — Daqui a pouco não vai doer mais, dona Flora, o efeito é bem rápido... (Tocando o braço da paciente) E essas fraturas, dona Flora... Foi acidente de carro?
FLORA — Não, de banheiro mesmo. A empregada deixou o piso molhado. (A SI) Desgraçada!
ENFERMEIRA — (Divertida) Piso molhado, alguém arrebentado.
FLORA — (Irônica) Pois é... Eu me arrebentei e meu marido é consolado.
ENFERMEIRA — É verdade... Com a mãe enferma, nada melhor que uma filha pra confortar o pai.
FLORA — Minha filha não, tô falando é da Giselda.
ENFERMEIRA — Giselda?!
FLORA — É uma cadela que temos em casa. Sem vergonha que só ela! Não pode ver um cachorro sem coleira... Parece que está sempre no cio.
SANTINHA — (Espantada, com as mãos no rosto) Mamãe! Deixa Giselda saber disso!
FLORA — (Decidida) Mas ela vai saber... ô, se vai! (Faz careta, põe a mão direita na testa. PARA A ENFERMEIRA) E meu remédio?
ENFERMEIRA — (Tirando-lhe o copo vazio da mão esquerda) Era só uma dose, querida... (TOM) Ah, dona Flora!... Seu marido ligou para a recepção.
FLORA — Pra saber se já morri?
ENFERMEIRA — O quê, dona Flora?
FLORA — Deve estar vindo aqui... não é isso?
ENFERMEIRA — É. Está a caminho. Agora fique aí quietinha, vou cobrir sua cabeça com o lençol por causa da claridade. (Cobre a cabeça e o corpo da paciente) Assim... Mais alguns minutos e a dor de cabeça passa. (PARA SANTINHA) É melhor você ficar um pouco lá no saguão, meu bem. Agora sua mãe precisa descansar um bocadinho, tá?
SANTINHA — (Levantando-se da poltrona) Será que mamãe ficou assim por minha causa?
ENFERMEIRA — Imagina! Pelo contrário, meu bem... A presença de um parente sempre reanima o paciente.
SANTINHA — Tô vendo...
FLORA — (De cabeça coberta) Ai ui, ai ai ui.. Ui ai, ui ui ai... (percussão em off)

A enfermeira e a menina VÃO SAINDO juntas, dançando. Fecham a porta.

CORTA PARA
CENA 2 - INT. PORTA DO QUARTO – DIA
PASSAGEM DE TEMPO

A porta abre. O MARIDO de Flora (45 anos) avança dois passos, deixando a porta aberta. Ao ver que Flora está dormindo, ele pára.

MARIDO — (A meia-voz) Florinha!... Querida!... Acorda, benzinho...

Percebendo que deixou a porta aberta, o marido se volta e vai fechá-la cuidadosamente. Quando se vira novamente para o leito, ele se transfigura (EXPRESSÃO DE HORROR).
(POV DO MARIDO) Flora está em pé diante da cama, de camisolão branco em desalinho, tipóia no braço esquerdo, perna direita enfaixada, cabelos desgrenhados, olheiras profundas e, na cabeça, UM PAR DE CHIFRES ENORMES. Em seguida, Flora começa a se locomover lentamente na direção do marido, arrastando a perna enfaixada. Vai com o braço direito estendido e a mão em garra, como se pretendesse enforcar o marido.

OFF — Mugido de boi.

Apavorado, o marido se volta rapidamente, abre a porta e SAI em

disparada. Flora continua caminhando, alcança a porta, cambaleante,

e desaparece.


FADE OUT


F I M

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