Introdução ao Documentário.
No capítulo 1, cada documentário tem sua voz distinta. A voz fílmica tem um estilo próprio, que funciona como uma assinatura. O noticiário televisivo tem sua voz própria.
No cinema, as vozes individuais prestam-se a uma teoria do autor, ao passo que as vozes compartilhadas, a uma teoria do gênero. O estudo dos gêneros leva em consideração os traços característicos dos vários grupos de cineastas e filmes. No filme e no vídeo documentário, podemos identificar seis modos de representação como o poético, expositivo, participativo, observativo, reflexivo e performático.
Os seis modos determinam uma estrutura de afiliação frouxa, onde os indivíduos trabalham, propiciam expectativas que os espectadores esperam ver satisfeitas. Cada modo compreende exemplos que podemos analisar como modelos: eles parecem mostrar de alguma maneira as características mais peculiares de cada modo, sendo que não podem ser copiados.
A ordem de apresentação dos seis modos corresponde à cronologia de seu surgimento. A identificação de um filme com um certo modo não precisa ser total. Um documentário reflexivo pode conter porções grandes de tomadas observativas ou participativas. Um documentário expositivo pode incluir segmentos poéticos ou performáticos. As características funcionam como dominantes num dado filme, ou seja, dão estrutura ao todo do filme, mas não determinam todos os aspectos de sua organização.
Um documentário performático pode exibir muitas características do documentário poético. Os modos não representam uma cadeia evolutiva. O documentário expositivo, remonta à década de 1920, porém continua exercendo influência até hoje. Os modos transmitem uma certa sensação de história do documentário. O modo observativo surge da disponibilidade de câmeras portáteis de dezesseis mm e gravadores magnéticos nos anos 60. O documentário poético parecia abstrato demais, e o documentário expositivo, didático demais, pois provou-se possível filmar acontecimentos cotidianos com mínimo de encenação.
A observação estava limitada ao momento em que os cineastas registravam o que acontecia diante deles. Mas a observação compartilhava traços com os modo poético e expositivo. O documentário participativo tomou forma com a percepção de que os cineastas não precisavam disfarçar a relação íntima que tinham com seus temas, contando histórias que pareciam ocorrer como se eles não estivessem presentes. Modos novos surgem, em parte, como resposta às deficiências percebidas nos anteriores, mas a percepção da deficiência surge da idéia do que é necessário para representar o mundo histórico de uma perspectiva singular num determinado momento.
A intensidade emocional e a expressividade subjetiva do modo performático tomaram forma nos anos 80 e 90. Esse modo se enraizou nos grupos cujo sentimento de comunidade crescera durante o período, como resultado de uma política de identidade que afirmava a relativa autonomia de grupos marginalizados. Esses filmes rejeitavam técnicas como o comentário com voz de Deus, não porque lhe faltasse humildade, mas porque a maneira de ver e conhecer o mundo, que já não se considerava aceitável. O que realmente muda é o modo de representação, não a qualidade ou o status fundamental da representação. Um modo novo não é melhor, ele é diferente. Um modo novo tem um conjunto diferente de conseqüências, onde acabará se mostrando vulnerável à crítica pelas limitações que um outro modo de representação prometa ultrapassar. Esses novos modos sinalizam menos uma maneira de representar o mundo histórico do que uma nova forma dominante de organizar o filme, uma nova ideologia para explicar nossa relação com a realidade.
O MODO POÉTICO
No capítulo 2, o documentário poético compartilha um terreno comum com a vanguarda modernista. Esse modo sacrifica as convenções da montagem em continuidade, e a idéia de localização específica no tempo. Os atores sociais assumem raramente a forma vigorosa dos personagens e uma visão definida do mundo. As pessoas funcionam em igualdade de condições com outros objetos, como a matéria-prima que os cineastas selecionam em associações escolhidos por eles.
O modo poético é hábil em possibilitar formas alternativas de conhecimento, dar prosseguimento a um argumento ou apresentar proposições sobre problemas que necessitam solução. Esse modo enfatiza mais o estado de ânimo , afeto do que as demonstrações de conhecimento.
A dimensão documental do modo poético de representação origina-se do grau em que os filmes modernistas se baseiam no mundo histórico como fonte. Os documentários poéticos retiram do mundo histórico sua matéria-prima, mas transformam-na de maneira diferente.
O modo poético começou alinhado com o modernismo, como uma forma de representar a realidade em uma série de fragmentos, impressões subjetivas e associações vagas. Essas características foram muitas vezes atribuídas às transformações da industrialização, em geral, e aos efeitos da primeira Guerra Mundial. O acontecimento modernista já não parecia fazer sentido em termos realistas e narrativos tradicionais. A divisão do tempo e do espaço, a recusa de soluções para problemas insuperáveis cercavam-se de uma sensação de sinceridade, mesmo quando criavam obras de arte confusas em seus efeitos. Embora alguns filmes explorem concepções mais clássicas do poético como fonte de ordem, integridade e unidade, essa ênfase na fragmentação continua sendo um traço importante em muitos documentários poéticos.
Cineastas como Kenneth Anger deram continuidade a aspectos do modo poético em filmes como Scorpio Rising em 1963, uma representação dos atos rituais dos membros de uma gangue de motociclistas, como fez Chris Marker em Sans Soleil em 1982, uma reflexão complexa sobre cinema. A maneira pela qual as classificamos depende muito das suposições que adotamos sobre categorias e gêneros. Esse modo tem muitas facetas, e todas enfatizam as maneiras pelas quais a voz do cineasta dá a fragmentos do mundo histórico uma integridade formal e estética peculiar ao filme.
As notáveis reformulações de Peter Forgacs de filmes amadores em documentos históricos enfatizam qualidades poéticas e associativas em vez de veicular informações ou convencer-nos de um determinado ponto de vista. As tomadas históricas, os fotogramas congelados, a câmera lenta, as imagens colorizadas, os momentos selecionados em cores, as legendas ocasionais para identificar tempo e lugar, as vozes que recitam passagens de diários que constroem um tom e um estado de espírito mais do que explicam a guerra ou descrevem seu curso de ação.
O MODO EXPOSITIVO
No capítulo 3, o modo expositivo agrupa fragmentos do mundo histórico numa estrutura mais argumentativa do que estética ou poética. Esse modo dirige-se ao espectador diretamente, com legendas ou vozes que propõem uma perspectiva, expõem um argumento ou recontam a história. Os filmes adotam o comentário com voz de Deus(o orador é ouvido, mas jamais visto), ou utilizam o comentário com voz de autoridade (visto e também ouvido), como nos noticiários televisivos.
A tradição da voz de Deus fomentou a cultura do comentário com voz masculina treinada, cheia e suave em tom e timbre, que mostrou ser a marca de autenticidade do modo expositivo, embora alguns dos filmes mais impressionantes tenham escolhido vozes menos educadas, precisamente em nome da credibilidade que obtinham evitando tanto treino.
Os documentários expositivos dependem muito de uma lógica informativa transmitida verbalmente. Numa inversão da ênfase tradicional do cinema, as imagens desempenham papel secundário. Elas ilustram, esclarecem, contrapõem o que é dito. O comentário é geralmente apresentado como distinto das imagens do mundo histórico que o acompanham. Na verdade, o documentário representa a perspectiva do filme.
Nesse modo, a montagem serve menos para estabelecer um ritmo ou padrão formal, como no modo poético, do que para manter a continuidade do argumento. Denomina-se de montagem de evidência. Esse tipo de montagem pode sacrificar a continuidade espacial para incorporar imagens de lugares se elas ajudarem a expor o argumento. O cineasta expositivo tem mais liberdade na seleção e no arranjo das imagens do que o cineasta da ficção.
O modo expositivo enfatiza a impressão de objetividade. O comentário com voz-over parece literalmente “acima” da disputa. O tom oficial do narrador profissional, empenha-se na construção de uma sensação de credibilidade, usando características como distância, neutralidade e indiferença. Essas qualidades podem ser adaptadas a um ponto de vista irônico.
Esse modo facilita a generalização e a argumentação abrangente. As imagens sustentam as informações básicas de um argumento geral em vez de construir uma idéia nítida das particularidades de um determinado canto do mundo. Propicia também uma economia de análise, já que as argumentações podem ser feitas, de maneira sucinta e precisa, em palavras. Esse modo também é ideal para transmitir informações ou mobilizar apoio dentro de uma estrutura preexistente ao filme. O bom senso constitui a base perfeita para esse tipo de representação do mundo.
O senso comum é um conjunto de valores e perspectivas menos permanente do que historicamente condicionado. Por isso, alguns filmes expositivos, que parecem exemplos clássicos de persuasão oratória em um momento, parecerão datados em outro. O argumento básico pode continuar sendo louvável, mas o que se considera senso comum pode mudar significativamente.
O MODO OBSERVATIVO
No capítulo 4, com freqüência, os modos poético e expositivo do documentário sacrificaram o ato específico de filmar as pessoas, para construir padrões formais. O cineasta reunia a matéria-prima necessária, e, em seguida, dava forma a uma reflexão, uma perspectiva ou argumento.
Os avanços tecnológicos no Canadá, Europa e nos Estados Unidos, nos anos que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, culminaram, em várias câmeras de 16 mm, como Arriflex e Auricon, e em gravadores de áudio, como o Nagra, que podiam ser facilmente carregados por uma pessoa só. A câmera e o gravador podiam mover-se na cena e gravar o que acontecia enquanto acontecia.
As formas de controle que um cineasta poético ou expositivo poderia exercer na encenação, na composição de uma cena foram sacrificadas à observação da experiência vivida. Resultou então, em filmes sem comentário com voz-over, sem música, sem legendas.
Como na ficção, as cenas costumam revelar traços de caráter e individualidade. Faz-se inferências e tira-se conclusões baseados no comportamento ou respeito do que se ouve. O isolamento do cineasta na posição de observador pede que o espectador assuma um papel mais ativo na determinação da importância do que se diz e faz.
Esse modo propõe uma série de considerações éticas que incluem o ato de observar os outros ocupando-se de seus afazeres. Na ficção, as cenas são arquitetadas para que vejamos e ouçamos tudo, ao passo que as cenas do documentário representam a experiência de pessoas reais que, por acaso, testemunhamos.
Os filmes observativos mostram uma força especial ao dar uma idéia da duração real dos acontecimentos. Eles rompem com o ritmo dramático dos filmes de ficção convencionais e com a montagem, às vezes apressada, das imagens que sustentam os documentários expositivos ou poéticos.
O MODO PARTICIPATIVO
No capítulo 5, as ciências sociais há muito cultivam o estudo de grupos sociais. A antropologia, por exemplo, é determinada pelo trabalho de campo, em que o antropólogo vive no meio de um povo, por um longo período, em seguida, escreve sobre o que aprendeu. Essa pesquisa exige forma de observação participativa. O pesquisador vai para o campo, participa da vida de outras pessoas, habitua-se à forma de viver e reflete sobre essa experiência, usando métodos da antropologia ou da sociologia.
Os métodos e as práticas da pesquisa em ciência social permaneceram subordinados à predominante prática de comover e persuadir o público. O documentário observativo reduz a importância da persuasão, para nos dar a sensação de como é estar em uma situação , mas sem a noção do que é, para o cineasta, estar lá também. O documentário participativo dá-nos uma idéia do que é, para o cineasta, estar numa situação e como aquela situação se altera. Os tipos e graus de alteração ajudam a definir variações dentro do modo participativo do documentário.
No documentário participativo, o que vemos é o que podemos ver apenas quando a câmera, ou o cineasta, está lá em nosso lugar. Nem todos os documentários participativos enfatizam a experiência ativa e aberta do cineasta ou a interação de cineasta e participantes do filme.
Os cineastas usam a entrevista para juntar relatos diferentes numa única história. A voz do cineasta emerge da tecedura das vozes participantes e do material que trazem para sustentar o que dizem. Os documentários acrescentam o engajamento ativo do cineasta com os participantes de seus filmes, ou com seus informantes, e evitam a exposição com voz-over anônima. Isso situa o filme mais num momento dado e numa perspectiva distinta, enriquecendo o comentário com a textura de vozes individuais.
O modo reflexivo
No capítulo 6, o mundo histórico provê o ponto de encontro para os processos de negociação entre cineasta e participante do filme, no modo reflexivo, são os processos de negociação entre cineasta e espectador que se tornam o foco de atenção. Em vez de seguir o cineasta em seu relacionamento com outros atores sociais, agora nós acompanhamos o relacionamento do cineasta conosco, falando não só do mundo histórico como também dos problemas da representação.
O modo observativo do documentário depende da ausência aparente ou da não-intervenção do cineasta nos acontecimentos filmados, o documentário em geral depende do descaso do espectador por sua situação real, diante da tela do cinema, interpretando um filme, em favor de um acesso imaginário aos acontecimentos mostrados na tela, como se apenas esses acontecimentos exigissem interpretação, e não o filme.
Os documentários reflexivos também tratam do realismo. Toma a forma de realismo físico, psicológico e emocional por meio de técnicas de montagem de evidência, desenvolvimento de personagens e estrutura narrativa. Esse modo desafia essas técnicas e convenções. O resultado global desconstrói a impressão de acesso desimpedido à realidade e convida-nos a refletir sobre o processo pelo qual essa impressão é construída por meio da montagem.
O modo reflexivo é o modo de representação mais consciente de si mesmo e aquele que mais se questiona. O acesso realista ao mundo, a capacidade de proporcionar indícios convincentes, a possibilidade de prova incontestável, isso tudo passam a ser suspeitas. Esse modo estimula no espectador uma forma mais elevada de consciência a respeito de sua relação com o documentário e aquilo que ele representa.
O documentário reflexivo tenta reajustar as suposições e expectativas de seu público e não acrescentar conhecimento novo a categorias existentes. Por essa razão, os documentários podem ser reflexivos tanto da perspectiva formal quanto política. Os documentários politicamente reflexivos reconhecem a maneira como as coisas são, mas também invocam a maneira como poderiam ser. Esses documentários apontam para nós, espectadores e atores sociais, e não para os filmes, como agentes que podem fechar essa brecha entre aquilo que existe e as novas formas que desejamos para isso que existe.
O modo performático
No capítulo 7, como o modo poético, esse modo suscita questões sobre o que é conhecimento. O documentário performático tenta demonstrar como o conhecimento material propicia o acesso a uma compreensão dos processos mais gerais em funcionamento na sociedade.
O significado é carregado de afetos. Experiência e memória, envolvimento emocional, questões de valor e crença, compromisso e princípio, tudo isso faz parte de nossa compreensão dos aspectos do mundo que mais são explorados pelo documentário: a estrutura institucional (governos e igrejas, famílias e casamentos) e as práticas sociais (amor e guerra, competição e cooperação) que constituem uma sociedade. Esse documentário sublinha a complexidade de nosso conhecimento do mundo ao enfatizar suas dimensões subjetivas e afetivas.
A combinação livre do real e do imaginado é uma característica comum do documentário performático. Esse documentário aproxima-se do domínio do cinema experimental, ou de vanguarda, mas, finalmente, enfatiza menos a característica independente do filme ou vídeo do que sua dimensão expressiva relacionada com representações que nos enviam de volta ao mundo histórico em busca de seu significado essencial.
O documentário performático restaura uma sensação de magnitude no que é local, específico e concreto. Ele estimula o pessoal, de forma que faz dele o nosso porto de entrada para o político.
O grande mérito deste livro é sugeri tipos de relações se espera que os espectadores tenham com os cineastas e seus temas. Por exemplo, perguntar o que fazemos com as pessoas quando fazemos um documentário, ou seja, perguntar o que fazemos com os cineastas, espectadores e também com aqueles que são tema do filme. Suposições sobre as relações que deveriam existir percorrem um longo caminho para determinar o tipo de vídeo ou filme documentário que resulta, a qualidade da relação que ele tem com seus temas e o efeito que exerce no público.
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